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Images/AFP/Y. Chiba Enterro de vítima da violência no Rio:
de um lado,
a dor das famílias, de outro, a indiferença da sociedade
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Foram 1.751
tiroteios, 222 mortos, 282 feridos só em 2018. O Rio vive uma onda de
violência. Ambos os lados, criminosos e polícia, matam. Mas as vítimas são
deixadas desamparadas. O modo como são tratadas é uma vergonha.
São as chamadas
"balas perdidas". Soa quase poético. E, claro, obscurece a realidade.
Porque essas balas não foram perdidas. Há sempre alguém que as dispara. As
balas vão zunindo, então, a velocidades de mais de 1.200 metros por segundo,
por ruas, becos e praças. Elas penetram carrocerias de automóveis e paredes de
casas. E frequentemente acertam, ao final de seu voo, pessoas para as quais não
eram destinadas, cuja morte é algo indiferente para o atirador. Muitas vezes
essas vítimas têm algo em comum, são de pele escura e pobres. E às vezes são
até crianças. Por isso, nas favelas fluminenses, costuma-se dizer agora que as
balas não são perdidas, são achadas. Porque sempre acham alguém.
Nas últimas
semanas, eu investiguei o drama das chamadas balas perdidas no Rio de Janeiro.
Conheci famílias que perderam um filho por causa de uma bala perdida. Foi uma
das experiências mais aflitivas da minha vida profissional, semelhante àquela
no Haiti após o terremoto de 2010 e em Ruanda, alguns anos após o genocídio.
De um lado,
está o desamparo e a dor profunda das famílias pela perda irreparável. Do
outro, a indiferença chocante da sociedade brasileira, que não só demonstra o
quanto é possível se acostumar com a violência, mas também o pouco que vale a
vida de algumas pessoas no Brasil.
Que tipo de
Estado é esse, que envia uma menina de 13 anos de idade a uma escola pública e
permite depois que ela seja morta por um tiro de seus policiais? Cuja porta-voz
da polícia classifica a garota de "dano colateral mais absurdo"? Um
Estado que não responsabiliza os responsáveis? Que deixa a família da menina à
própria sorte? Nenhum telefonema, nenhuma condolência, nenhuma assistência
psicológica, nada? Que depois não só se recusa a pagar uma indenização, mas
cujo governador é covarde o suficiente para não se encontrar com a família da
vítima?
Maria Eduarda
Alves foi atingida por quatro tiros da polícia em uma escola há pouco mais de
um ano. Seu caso se tornou um símbolo da lógica impiedosa das balas perdidas.
Mas por que seu caso se tornou mais conhecido que os outros? "Porque os
dois oficiais responsáveis foram filmados depois atirando em dois homens
desarmados", disse-me um coronel reformado da PM. "De outra forma,
Maria Eduarda teria sido esquecida no dia seguinte."
Quando me
encontro com a família de Maria Eduarda, no bairro da Taquara, o irmão dela
expressa o que muitas famílias de vítimas sentem. "A questão é", diz
Uidson Ferreira, "será que a polícia também iria sair atirando desse jeito
na zona sul, onde vivem os ricos?" Claro que essa é uma pergunta retórica.
Uidson Ferreira
tem uma barba de três dias e porte atlético. Ele trabalha como professor de
artes marciais e vive em uma favela. Repetidamente, ouve o argumento de que
você mesmo é o culpado se está em uma zona de risco. "Mas Maria Eduarda",
argumenta Uidson Ferreira revoltado, "não estava na hora errada no lugar
errado. Ela estava onde deveria estar: na escola!"
Até hoje, ele e
sua mãe tentam, por isso, marcar um encontro com o governador do Rio, Luiz
Pezão. Eles querem uma compensação. Mas Pezão, que está sob suspeita de
corrupção, cancela um compromisso após o outro.
"O que
aconteceria se o filho de um advogado, arquiteto ou médico fosse morto em tal
ação?", pergunta Ferreira. "Uma criança branca?" Ele deixa
assim, sem resposta. Mas é possível imaginar o alvoroço na mídia. E logo vem à
cabeça a famosa frase de A revolução dos bichos, de George Orwell,
que poderia ser adaptada dessa forma: "Todos os brasileiros são iguais,
mas alguns são mais iguais do que os outros".
Fábio e Paloma
Novaes também se sentem abandonados pelo Estado. A história deles é uma das
mais tristes que conheci no Rio. Eu os encontrei no Complexo do Alemão, não
muito longe de onde perderam o filho deles, em março.
Benjamin Novaes
tinha um ano e sete meses quando levou uma bala na cabeça na entrada da favela
Nova Brasília. Traficantes abriram fogo contra uma patrulha policial em um
beco. A polícia imediatamente respondeu aos tiros, embora houvesse dezenas de
pessoas na rua, fazendo compras. Paloma, de 30 anos, estava exatamente na linha
de fogo com seus dois filhos, ela estava comprando algodão doce. Quando ela viu
o que havia acontecido, ela tentou, em estado de choque, colocar a massa
encefálica de seu filho, que estava espalhada sobre seu carrinho, de volta ao
crânio do menino. "Eu não queria mais viver", ela me diz.
Benjamin Novaes
é uma das 13 crianças mortas em tiroteios no Rio de Janeiro desde o início de
2017. Elas são as vítimas mais difíceis de se aceitar de um conflito que
nenhuma outra cidade do mundo experimenta em tempos de paz. O Rio de Janeiro,
como me disseram policiais de alto escalão, encontra-se numa guerra de baixa
intensidade. É uma descrição da realidade – e ao mesmo tempo é uma desculpa
para as ações imprudentes das forças de segurança nas favelas. Porque na guerra
não há mais tabus. Alguns leitores agora contestariam, dizendo que os
criminosos atiram primeiro, sem se importarem com vítimas inocentes e que a
polícia só reage a isso. Mas será que os mesmos padrões podem realmente se
aplicar a bandidos e a um Estado cuja primeira tarefa é proteger seus cidadãos?
Sentados na
saliência de um muro no Alemão, Paloma e Fábio Novaes olham para o vazio. Para
uma foto, eles colocam algumas roupas no muro: camisetas, sapatos, um boné.
Eles pertenciam a Benjamin.
Após a morte do
menino, ninguém ligou para eles, ninguém ofereceu ajuda. Nem a polícia, nem o
governador, nem o prefeito. Ninguém. Apenas os repórteres vieram, a quem eles
disseram que não podiam pagar o funeral. Uma campanha de doações obteve a soma
necessária para um túmulo simples. Paloma e Fábio Novaes não o visitaram desde
o funeral. As dores seriam grandes demais.
Quem disparou a
bala que matou Benjamin ainda é um mistério. Só o fato de ela poder ter vindo
de uma arma da polícia desencadeia um sentimento de impotência em Fábio Novaes.
"O Estado não tem interesse algum em esclarecer o crime", diz ele.
"Nossa vida vale no Brasil menos que uma lata de Coca-Cola. Porque pela
lata você ainda consegue algum dinheiro."
Para minha
reportagem sobre as vítimas da violência no Rio, também queria encontrar um
policial que perdeu uma perna em um tiroteio com traficantes. Mas no último
minuto ele cancelou, porque não gostou da "ideologia" que ele achava
ter encontrado nas minhas reportagens. É "uma ideologia falida". O
Brasil parece tão polarizado que nenhuma conversa é mais possível.
No entanto, é
possível um encontro com o coordenador de Assuntos Estratégicos, coronel
Roberto Viana. Ele lista os cinco aspectos que devem ser observados pelos
policiais do Rio antes de atirar: legalidade para defender a vida, necessidade,
moderação, proporcionalidade, aspectos éticos. Mas estas são obviamente
categorias relativas. "Quando alguém atira em você”, diz Viana,
"então você entra numa visão em túnel. E você tenta se defender e atirar
de volta, mesmo em lugares com pessoas”. Claro que o tempo, nesse momento, não
é suficiente para se avaliar os cinco critérios. "Nós, policiais,
desenvolvemos uma mentalidade de trincheira", diz Viana. "Muitos
colegas ficam doentes por causa dessa pressão."
A guerra do Rio
é uma "situação lose-lose” típica. E também é lógico que
alguns perdem mais do que os outros.
Eu ando com
Paloma e Fábio Novas, descendo o Complexo do Alemão. Chegamos a um grande
grafite que mostra Benjamin juntamente com uma série de outras vítimas da
violência. Eles permanecem em silêncio por um longo tempo diante do desenho.
Paloma diz: "Eu quero acordar desse pesadelo".
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