O terceiro
capítulo do documentário "Complexo"
mostra a
rotina de violência no Alemão. Reprodução
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Confrontos entre policiais e
criminosos ocorrem quase diariamente nos conjuntos de favelas do Alemão e da
Penha, com a população no meio do fogo cruzado.
Quase sete anos após a
megaoperação que levou as forças de segurança a ocupar os complexos do Alemão e
da Penha, a rotina de violência e tiroteios pouco mudou. Polícia de um lado,
criminosos de outro, e a população no meio do fogo cruzado, com medo,
adoecendo, muitas vezes perdendo a vida.
Na manhã desta quarta-feira (7),
houve mais uma operação na comunidade Nova Brasília, novamente com troca de
tiros. Por volta das 7h, muitas pessoas circulavam a caminho do trabalho ou da
escola - mais de 800 estudantes ficaram sem aulas devido ao confronto.
Em seu terceiro capítulo, o
documentário "Complexo" mostra essa absurda rotina e dá voz aos
moradores: as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) devem permanecer nas
comunidades?
"Favelado nenhum consegue se
acostumar. Muitas das vezes, erradamente, a gente naturaliza o tiroteio. Às
vezes dá 10 minutos...E passa. Mas são 10 minutos que a gente tem nossa vida
interrompida, e que a gente poderia estar produzindo arte, trabalhando, fazendo
um monte de coisa. Então, se acostumar com tiroteio é uma coisa impossível, não
existe isso, não existe", afirma Lana de Souza, do coletivo Papo Reto.
Em 15 anos, mais de 2.600 pessoas
morreram na região, e 2007 foi o ano mais violento, com 353 vítimas. Naquele
ano, a guerra começou no asfalto, após os assassinatos do pequeno João Hélio -
preso ao cinto de segurança do carro roubado e arrastado por várias ruas pelos
criminosos em fuga - e de dois PMs, fuzilados por traficantes do Alemão.
Foram três meses de confrontos
diários, que deixaram centenas de feridos e culminaram com 19 mortos em um únco
dia. "Em 2007 já foi um baque muito grande. Foi uma das vezes que eu vi
mais sofrimento ali. Começou com derramamento de sangue. E depois houve a
ocupação, que foi assim o tempo do medo.. foi um medo.. quem tava lá dentro
sofreu o medo", lembra a assistente social Lúcia Cabral.
Noite de sábado, 27 de novembro de
2010: na véspera da ocupação das comunidades, criminosos provocavam os
policiais a postos para entrar no Alemão - "Bota a cara, bota a
cara!", gritavam. O delegado Rodrigo Oliveira, que participava da ação,
relembra aqueles momentos.
"O momento mais tenso é
aquele que antecede a operação. A gente tomava tiro, às vezes, de onde a gente
sequer sabia de onde vinha. Eu olhava para os colegas que estavam ao meu lado e
eu ficava me perguntando se alguns de nós ali sairia machucado. Tive a
oportunidade de participar de algumas operações ali que, pra percorrer 300, 400
metros eu levei cinco horas. Isso é algo que talvez nem na guerra ocorra",
conta o hoje chefe da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core).
As UPPs foram um avanço, mas hoje
há um retrocesso na pacificação. Com apenas 7 anos, Letícia Vitória Guimarães,
moradora do Alemão, diz que seu maior desejo é que o som dos tiros sejam
substituídos por música clássica. Mas a realidade se mostra cada vez mais
difícil de mudar.
Para a socióloga Silvia Ramos, do
Centro de Estudos de Segurança da Universidade Cândido Mendes, a UPP fracassou
porque "a velha polícia ganhou da polícia de pacificação".
"Havia uma disputa entre as formas antigas de fazer policiamento,
ostensividade, violência. Então esse modelo de colocar moradores em risco, de
colocar o tiroteio em primeiro lugar, de colocar o confronto com criminosos
acima de qualquer coisa, esse modelo venceu o modelo de polícia de
proximidade", analisa a pesquisadora.
Ex-secretário de Segurança do Rio
e responsável pela implantação das UPPs, José Mariano Beltrame diz que a rotina
de violência do Alemão foi justamente o que motivou o projeto de pacificação de
comunidades. "O que se vê hoje no Alemão não é a UPP. O que se vê hoje foi
o que deu motivo para se fazer a UPP. A gente fez um programa por causa do que
tá acontecendo hoje. Balas perdidas, policiais mortos, pessoas que nao tem nada
a ver com isso morrendo. Isso deu causa pra se fazer a UPP", diz Beltrame,
que hoje fala em reocupar as comunidades, mesmo sem a certeza de que seja a
solução definitiva para a violência:
"Eu sei que sou suspeito para
falar, mas o Rio de Janeiro nao vira a página da violência sem mexer nesses
locais. Se fosse assumir a Secretaria de Segurança hoje, eu pediria que nós
tivéssemos aqui no rio de janeiro tropas federais, Exército, Marinha,
Aeronáutica, Receita Federal, Polícia Rodoviária. Eu acho que isto é uma briga
do bem contra o mal. Vai resolver? Não vai, mas nós precisamos colocar um
limite na ação do crime".
O delegado Rodrigo Oliveira
concorda com a análise de Beltrame: "Se for necessário o emprego da força
novamente, sim! Chega num determinado momento que não existe outra opção que
não o enfrentamento", declara.
Com a instalação de uma torre
blindada na Nova Brasília, no fim de abril, a tática do enfrentamento ganhou
força, mas também motivou novos confrontos, com suspeitos e inocentes mortos:
em 40 dias, foram 10 pessoas mortas. Comandante da Coordenadoria de Polícia
Pacificadora, o coronel André Luiz Belloni diz que as torres são necessárias.
"Se trata de uma estratégia
de nós minimizarmos a vitimização, não só do policial militar, como também dos
moradores dessa região. Hoje as torres blindadas se tornam necessarias em
virtude do poderio bélico do narcotráfico dessas áreas conflagradas", diz
o oficial.
A opção pelo enfrentamento traz a
reboque também a marca dos abusos: moradores afirmam que policiais militares
costumam invadir casas e criar abrigos ilegais. Um aplicativo recebe vídeos de
violações de direitos humanos, e as denúncias geram procedimentos de
investigação pelo Ministério Público e pela Corregedoria da PM.
"Eles chegam arrebentando o
portão e entram de qualquer maneira, está muito difícil. Eu não consigo dormir.
não tem calmante que de jeito mais pra eu dormir, porque ninguém sabe a hora
que eles vão meter o pé na porta. Tem que estar sempre vigiando", diz uma
moradora.
Para a diretora executiva do
Instituto Igarapé, Ilona Szabó, a instalação das torres representa um nítido
retrocesso da pacificação. "Se a gente está dizendo que é uma política de
pacificação e de repente você instala uma torre blindada, obviamente uma coisa
não vai com a outra e a população, que ja estava descrente, acaba por se desesperar.
E eu imagino o desespero da população do alemão, qual é o sinal que eles
receberam aquele dia", afirma ela.
As operações policiais continuam,
com reforço de um novo veículo blindado - apelidado pelos mroadores de 'Branca
de Neve da paz' - e mais uma vítima inocente: no
último dia 29, Marinete Berto, de 56 anos, foi morta por um tiro na cabeça
quando voltava do trabalho. "Hoje se tornou muito banal a morte.
Ah, não sei quem morreu, morreu mais um policial, morreu um morador, morreu um
jovem que estava no varejo das drogas. A gente fica contando corpos, num jogo
bizarro onde a gente tem torcidas, inclusive. Não pode", diz Raul
Santiago, também do coletivo Papo Reto.
Professor da Uerj e coordenador do
Laboratório de Análise da Violência (LAV) da universidade, Ignacio Cano destaca
que o obejtivo de qualquer política de segurança tem que o fim do risco para a
vida das pessoas. "Quem apoiaria operações policais que colocam a vida das
pessoas em risco em horário escolar, por exemplo? Nós apoiaríamos isso em
Copacabana, em Ipanema? É claro que não. Então, entrar num lugar só para trocar
tiros e dizer 'estamos dentro' é loucura e traição ao princípio da pacificação
justamente como forma de diminuir os confrontos", declara Cano, que
arremata: "Então, se é para ficar trocando tiro, é melhor [a polícia] não
estar lá".
Contudo, ainda existe esperança em
duas comunidades do Alemão. Nos morros do Adeus e da Baiana, é possível
circular sem problemas, a polícia consegue se aproximar da população e realiza
projetos que vão além do patrulhamento. Silvia Ramos lembra que a marca do
trabalho bem sucedido é o diálogo.
"O tratamento que deu certo
nas UPPs era 'Bom dia, boa tarde, vamos nos reunir? Tem queixas? Nós também
temos queixas de vocês. Vamos conversar, combinar um novo pacto.' Onde isso
aconteceu, as coisas progrediram", ressalta a pesquisadora.
No Adeus e na Baiana, policiais
dão aulas de reforço escolar e de taekwondo para crianças e adolescentes.
Comandante da UPP que patrulha as duas comunidades, a capitão Silvia Souza diz
que o policiamento de proximidade deu certo ali e pode dar certo em outras
comunidades, desde que todos os atores sociais assumam seus papéis.
"Todo mundo já percebeu que a
gente está chegando no fundo do poço, porque só a polícia não vai resolver.
Muitas vezes o morador quer aquele policial ali, mas por conta dessa memória,
desse inconsciente coletivo de que o policial é ruim, de que o policial é
truculento, isso acaba entrando na mente do cidadão que também vivenciou muitas
questões de conflito. Na favela ou no asfalto, ninguém gosta de ser
maltratado", explica.
A oficial observa, contudo, que o
fato de os morros estarem separados das demais comunidades do Alemão pela
Estrada do Itararé favorece a polícia. "Vez por outra existe uma guerra,
uma tentativa de retomada de território, porém nenhuma facção se interessa
muito pela região por conta dessa questão, principalmente do relevo", diz
Silvia.
Alguns policiais não aguentam o
estresse causado pela rotina de violência e pedem para sair. Enquanto alguns se
afastam, outros apelam para tranquilizantes ou morrem nos confrontos. E os
números comprovam: quando a violência explode, aumentam as doenças dos sistemas
nervoso e circulatório. A cuidadora de idosos Luciene Vieira da Silva sabe bem
o que é isso: após sofrer um AVC hemorrágico, ela ficou internada por mais de
três meses e teve o lado esquerdo do corpo paralisado.
"Quase todo dia é tiroteio, é
bangue-bangue. Quando não é isso, a polícia está entrando, está saindo, Fulano
tomou tiro em tal lugar, aí a gente fica tensa, né? E a pressão alta também,
que eu tinha, né? Aí juntou uma coisa e outra", conta ela.
Outro sociólogo, Jailson Souza e
Silva, do Observatório das Favelas, diz que a guerra tem que parar. "É
necessário que todo mundo pare e fale o que que é possível regular ali. Que a
vida da população está um inferno, a vida dos policiais está um inferno e a
vida dos traficantes está um inferno. Ou seja, ali não interessa nada a
ninguém. É um terror absoluto e cotidiano", define.
Por RJ TV
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