UFRJ sofre o maior furto de livros raros do
BrasilSeverino Silva / Agência O Dia
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Desapareceram 303 obras raras,
entre elas os 16 volumes da primeira edição dos Sermões de padre Antônio Vieira
Rio - A antiga Biblioteca Central
da Universidade do Brasil - atual Biblioteca Pedro Calmon, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que abriga raridades do tempo do Império -
foi furtada no ano passado, e agora, terminado o levantamento do que sumiu das
prateleiras, o que se descobriu é um espanto: o maior furto de livros raros já
registrado no País.
Desapareceram 303 obras raras,
entre elas os 16 volumes da primeira edição dos Sermões de padre Antônio Vieira
(1610) e quase toda a Coleção Brasiliana do acervo, composta por livros de
viajantes europeus que registraram flora, fauna e costumes do País dos séculos
17 ao 19.
Sumiram preciosidades como
Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud (1850-1859), do
naturalista inglês Francis de Castelnau, com centenas de litografias pintadas à
mão; e um livro do etnógrafo alemão Thomas Koch-Grümberg, pioneiro da
fotografia antropológica, com 141 fotos de indígenas da região do Rio Japurá,
na Amazônia, retratados entre 1903 e 1905. O principal alvo foram obras com
gravuras, que costumam ser cortadas a navalha e vendidas separadamente.
A suspeita é de que o furto tenha
se desenrolado durante os meses de uma reforma no prédio, em 2016. As estantes
foram fechadas com bolsas de plástico preto - e foi dentro delas que os ladrões
trabalharam.
A princípio, o crime parecia
pequeno. Dois criminosos - Laéssio Rodrigues de Oliveira, de 44 anos,
ex-estudante de Biblioteconomia envolvido em furtos de livros desde 1998, e
Valnique Bueno, seu comparsa - foram presos pela polícia paulista em novembro,
por furtar obras das Faculdades de Arquitetura e Direito da Universidade de São
Paulo (USP). Como havia com eles cinco raridades da UFRJ, deu-se o alarme na
Praia Vermelha. Hoje, seis meses depois, entende-se a dimensão do crime, bem
maior do que a dezena de exemplares. No mercado, pode-se ter ideia de valores:
apenas os 27 livros apontados como "mais raros" entre os furtados
valem entre R$ 380 mil e R$ 500 mil, segundo um avaliador.
"O ladrão sabia o que roubar,
não pegou a esmo", diz o delegado Marcelo Gondim, da Delegacia de
Atendimento ao Turista de São Paulo, que prendeu Laéssio e o comparsa em
novembro. "Câmeras de segurança mostram a dupla furtando a USP. Na UFRJ
não há imagens, mas o prendemos por receptação. A ligação ao furto no Rio são
os próprios livros encontrados com Laéssio e ex-libris da UFRJ jogados em uma
lixeira na casa dele." Em março, três livros da Pedro Calmon foram
recuperados pela Receita - seguiam para Europa e tinham como remetente o CPF de
Laéssio. Atualmente, a Polícia Federal apura o crime.
Velho conhecido
Ainda sem saber do estrago na
instituição carioca, quem trabalha na área comemorou a prisão de Laéssio. Ele é
velho conhecido da classe - foi condenado pelo menos três vezes por furto de
livros raros e indiciado pela mesma razão "inúmeras vezes", como
indica uma decisão judicial. Os maiores acervos do País já foram suas vítimas,
como Biblioteca Mário de Andrade, Museu Nacional, Biblioteca Nacional, Palácio
do Itamaraty e Fundação Oswaldo Cruz, entre outros.
A maior parte dos livros nunca foi
encontrada - o índice de recuperação é de 40%, segundo Raphael Greenhalgh, da
Universidade de Brasília (UnB), autor de uma tese de doutorado sobre os maiores
furtos no País, nenhum tão numeroso quanto o da Pedro Calmon. Quando as obras
retornam, é comum virem adulteradas. Num crime pelo qual Laéssio foi condenado,
o furto no Museu Nacional, 14 livros raros tiveram as ilustrações navalhadas.
Com o novo crime, o pessoal das
bibliotecas voltou a analisar Laéssio - e o que foi descoberto causou revolta.
A vida do criminoso vai virar filme, financiado com dinheiro público.
Confissões de um Ladrão de Livros é o título do projeto, apresentado à Agência
Nacional do Cinema (Ancine) pela Boutique Filmes. A agência autorizou captação
de patrocínio de R$ 771 mil por meio da Lei do Audiovisual. Até aqui, a produtora
recebeu R$ 600 mil, da Globo Filmes e do Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES).
O fato de um notório ladrão de
acervos públicos receber apoio do governo para ter a vida retratada em filme
levou as vítimas a se unirem para protestar. A Câmara Técnica de Segurança de
Acervos do Arquivo Nacional, ligada ao Ministério da Justiça, prepara um
documento de repúdio à produção. "Parece um escárnio. Nada contra filme
sobre crimes, mas, ao autorizar patrocínio, a Ancine chancela os danos ao
patrimônio público", afirma Marcelo Lima, da Câmara Técnica.
A sinopse do filme também causa
descontentamento. Alguns trechos: "O melhor de tudo é que Laéssio é real,
de carne e osso, e sua escalada no crime pode ser atestada por matérias
jornalísticas(...)" e "ao longo de sua caminhada, Laéssio compôs um
portfólio incalculável(...)".
Para as vítimas, são sinais de que
o filme pode glamourizar o ladrão. "Falta só colocar nariz de palhaço nos
servidores. É o fim da picada", diz Maria José da Silva Fernandes,
diretora do centro de coleções da Biblioteca Nacional. "Não é um Robin
Hood dos livros. Ele os retira de uma instituição pública e vende a um
particular", afirma o ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade Luiz
Armando Bagolin. "Tentei muitas vezes leis de incentivo para conservar o
acervo, e nada. Agora um ladrão da cultura nacional consegue?", indaga
José Tavares Filho, bibliotecário responsável pelo acervo da Pedro Calmon.
A Boutique Filmes diz que a
sinopse foi feita antes de a produção começar de fato. E que o resultado não
será a glamourização da vida de Laéssio. Após o furto, a UFRJ reforçou as
trancas na biblioteca e está instalando novas câmeras. Quanto a Laéssio,
apareceu outra novidade no início do mês: ele já respondia em liberdade aos
casos da USP e UFRJ, mas foi preso de novo, no Rio, condenado pela Justiça
Federal pelo furto ao Museu Nacional, em 2004. A pena é de dez anos de cadeia,
por furto qualificado com agravantes como "sério menosprezo à memória
nacional".
Os que cuidam dessa memória
celebraram um pouco, mas continuam céticos: a sensação geral entre os
bibliotecários é de que, como um deles escreveu, "roubar livros não dá
cana no Brasil".
Estadão
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