Estudo inédito revela que áreas sob controle de grupos armados concentram mais pessoas sem educação básica; mesmo com mais demanda, esses locais têm menos turmas de EJA
A violência
armada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro está diretamente relacionada à
redução das oportunidades educacionais: por um lado, contribui para o abandono
escolar e, consequentemente, para o aumento na demanda por vagas na Educação de
Jovens e Adultos (EJA); por outro, as áreas mais afetadas pela violência
territorial são justamente as que oferecem menos turmas dessa modalidade. Essa
é uma das principais conclusões da pesquisa inédita “Educação de Jovens e
Adultos e Violência Urbana na Metrópole do Rio de Janeiro”, que acaba de ser
lançada.
Iniciativa
da Fundação Roberto Marinho, a pesquisa foi realizada por instituições
especialistas em investigações sobre a violência em territórios urbanos e
desigualdades educacionais: Instituto Fogo Cruzado, o Grupo de Estudos dos
Novos Ilegalismos (GENI/UFF), o Centro para o Estudo da Riqueza e
Estratificação Social (Ceres/IESP-UERJ) e o Núcleo de Pesquisa em Desigualdades
Escolares (Nupede/UFMG).
Ao cruzar
dados sobre abandono, oferta de turmas e disputas territoriais, os
pesquisadores identificaram que os grupos mais afetados pela violência urbana
são os mesmos que enfrentam maiores dificuldades para permanecer estudando ou
retomar os estudos por meio da EJA. Em muitas localidades, a presença do
tráfico ou da milícia dificulta a abertura e manutenção de turmas, restringe o
deslocamento seguro dos estudantes e compromete o funcionamento das unidades
escolares, o que contribui para a baixa taxa de atendimento da modalidade.
O estudo destaca que as áreas sob controle de grupos armados registram as piores condições para a efetivação do direito à educação, com índices mais elevados de abandono escolar. As chances de um estudante da rede pública, matriculado nos anos finais do ensino fundamental, abandonar a escola é 14% maior em áreas controladas pelo tráfico ou pela milícia. A probabilidade de abandono cresce ainda mais nos anos iniciais, considerando escolas públicas e privadas, variando de 27,5% a 31,1%.
"Os
dados apontam que a violência armada restringe de forma direta o direito à
educação, tanto pela ampliação do abandono escolar quanto pela redução da
oferta de EJA em territórios onde ela é mais necessária. Garantir que jovens,
adultos e idosos possam retomar seus estudos exige políticas públicas que
reconheçam as desigualdades territoriais e articulem educação, proteção social
e ações que assegurem a segurança para estudantes e educadores”, ressalta a
superintendente de Conhecimento da Fundação Roberto Marinho, Rosalina Soares.
A pesquisa
considera como “demanda potencial” da EJA as pessoas que não concluíram o
ensino fundamental (com 15 anos ou mais) ou médio (com 18 anos ou mais). A
educação é um direito de toda a população, em qualquer etapa da vida, o que
torna fundamental a análise da demanda potencial da EJA. Na Região
Metropolitana do Rio, esse público ultrapassava 3 milhões de pessoas em 2022 —
sendo 1,5 milhão na capital e 1,7 milhão nos demais municípios. A distribuição
dessas pessoas, porém, é desigual: a maior concentração está em territórios
periféricos, como a Baixada Fluminense, o Leste Metropolitano e as favelas.
Esses espaços também coincidem com regiões sob influência de grupos armados.
Embora o
estudo não estabeleça relação causal entre violência e abandono escolar, os
dados mostram que a proporção da população de perfil EJA é significativamente
maior em áreas de milícia (33,3%) e tráfico (36,2%) se comparada às áreas sem
controle territorial (19,1%).
O case
dos estudantes da Fundação Roberto Marinho
A Fundação
Roberto Marinho mantém um modelo experimental de Educação de Jovens e Adultos
(EJA) há mais de dez anos, que oferece formação para os anos finais do ensino
fundamental e médio. O programa opera em classes descentralizadas, localizadas
em bairros do Rio, como no Complexo da Maré e em Del Castilho, além de turmas
no Porto da Pedra em São Gonçalo. Entre 2016 e 2024, foram aproximadamente
2.400 estudantes matriculados em 71 turmas.
Os dados de
localização das turmas e moradias possibilitaram analisar o impacto da
violência armada na vida dos estudantes da escola da Fundação Roberto Marinho.
O estudo deste grupo demonstra que a violência urbana pode se materializar em
ocorrências esporádicas nos deslocamentos, como tiroteios, mas também produz
influência sobre as decisões de trajeto, a fim de evitar áreas perigosas.
Considerando
o grupo de alunos da escola da Fundação Roberto Marinho, 65,6% estudam ou moram
em locais controlados, e 31,3% encontram-se nos dois casos, ou seja, estudam e
moram em locais controlados por grupos armados. Ao cruzar os dados de
deslocamentos com informações sobre eventos violentos, os pesquisadores
descobriram, ainda, que quase 85% dos estudantes estiveram expostos, durante
seu percurso escolar, a áreas em que houve tiroteios com mortos e feridos. Além
disso, 73% utilizavam rotas em que ocorreu alguma ação policial, considerando
apenas o período em que estavam estudando.
"Os
trajetos escolares dos nossos estudantes mostram que a violência pode
interromper não apenas um caminho, mas o próprio processo de seguir estudando.
Muitos precisam evitar ruas, esperar operações policiais terminarem ou se
desviar de áreas em conflito. São decisões cotidianas que revelam a força das
desigualdades que enfrentam para permanecer na escola e concluir seus estudos,
um direito que deveria ser garantido a todos, em qualquer território",
destaca o secretário geral da Fundação Roberto Marinho, João Alegria.
Redução
na oferta de EJA
Com base nos
dados do Censo Escolar, o número de escolas com oferta de turmas na modalidade
EJA na Região Metropolitana do Rio diminuiu 23,5% entre 2010 e 2022. No mesmo
período, cresceram as localidades controladas por grupos armados. Assim, mesmo
em um contexto de encolhimento da EJA, o número de escolas, estudantes e
professores da modalidade expostos à violência é cada vez maior. Das 742
escolas da região metropolitana que ofertam EJA, 164 estão em áreas dominadas
pelo tráfico ou milícias.
“A dinâmica
dos tiroteios na Região Metropolitana do Rio tem prevalência no período noturno
— justamente aquele em que se concentram a esmagadora maioria das turmas de
EJA. Em 2017, por exemplo, 411 tiroteios foram registrados no entorno de
escolas com EJA, dos quais 325, ou cerca de 80%, ocorreram à noite, e embora em
2023 esse número tenha caído para 232 eventos (93 noturnos), a maioria ainda
ocorria à noite. A violência armada continua reorganizando o cotidiano escolar,
atrasando a saída de casa, obrigando estudantes a mudar de rota ou simplesmente
a desistir da aula naquele dia. Cada ida à escola à noite é também uma
negociação cotidiana com o medo e com a possibilidade concreta de interrupção
de sua trajetória educacional”, explica o pesquisador Rogério Jerônimo Barbosa,
professor do IESP-UERJ e coordenador do Centro para o Estudo da Riqueza e
Estratificação Social.
O estudo também estimou como o domínio territorial por grupos armados afeta a probabilidade de as escolas da Região Metropolitana do Rio oferecerem turmas de EJA. Os resultados mostram reduções expressivas nessa probabilidade em ambos os níveis de ensino: no ensino fundamental, escolas situadas em áreas de tráfico apresentam queda de até 32,5 pontos percentuais na oferta de EJA, enquanto aquelas em áreas de milícia registram redução de 20,3 pontos. No ensino médio, o efeito também é negativo — uma diminuição de 18,3 pontos percentuais em áreas de tráfico e de 5,2 pontos em territórios sob milícia — quando comparadas a escolas localizadas em áreas sem controle armado.
Ao analisar a chamada “demanda atendida” — relação entre o número de matrículas
na EJA e a população que não concluiu a etapa de escolarização correspondente
—, os pesquisadores identificaram uma piora consistente no atendimento entre
2010 e 2022. A queda na oferta não se explica por menor procura: embora o
contingente populacional com perfil para a EJA tenha diminuído, a insuficiência
no atendimento cresceu, ampliando o descompasso entre oferta e demanda.
O relatório
também investigou a dinâmica da violência no entorno das escolas que oferecem a
modalidade de educação para jovens, adultos e idosos. Entre 2017 e 2023, o
número de tiroteios registrados nessas áreas caiu de 411 para 232 — com
destaque para a redução das ocorrências noturnas, período em que se concentram
as turmas de EJA, que passou de 325 para 93 casos. Apesar da queda, a pesquisa
mostra que a violência crônica permanece como um entrave significativo. A
análise estatística indica que, em comparação com regiões sem atuação de grupos
armados, áreas sob domínio do tráfico e da milícia apresentam, respectivamente,
60% e 30% menos atendimento da demanda potencial por EJA de ensino fundamental.
Os dados
reforçam que a presença de grupos armados impacta diretamente a efetividade das
políticas de escolarização de jovens e adultos na Região Metropolitana do Rio.

0 comentários:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentario.
Fique sempre ligado do que acontece em nossa cidade!