A operação de choque em Buenos Aires para isolar favelas contra o coronavírus | Rio das Ostras Jornal

A operação de choque em Buenos Aires para isolar favelas contra o coronavírus

© Província de Buenos Aires Cerca de 300 pessoas
 com macacões, máscaras e óculos percorreram
 comunidade carente para higienizar região e orientar
 moradores em Buenos Aires

Uma tropa de cerca de 300 pessoas, vestidas com macacões, máscaras e óculos de acrílicos, entra nas ruas de terra para conter o novo coronavírus nas casas simples do bairro José Luis Cabezas, na província de Buenos Aires. O lugar é cercado por policiais. Os soldados, com apoio de sanitaristas e voluntários, controlam as entradas e saídas do local. Cada morador abre os braços em cruz e é borrifado para que seja eliminado o vírus das suas roupas. Dentro do bairro, eles têm as mãos higienizadas, por algum integrante da tropa, com um spray de álcool em gel.
A operação de combate à propagação da Covid-19, doença provocada pelo vírus, começou a ser realizada ali na quarta-feira (3), quando o mapeamento diário de casos na província de Buenos Aires mostrou a disparada de infectados em uma área do bairro.
Cinquenta casas, muitas de chapa, com cerca de 250 moradores, próximas à linha férrea, foram bloqueadas. Os moradores devem ficar isolados durante, pelo menos, 15 dias. Aqueles com qualquer um dos sintomas da covid-19, que pelos tamanhos de suas casas não possam realizar o isolamento, são levados para um hotel, universidade ou hospital de campanha preparados para recebê-los. Aqueles que testam positivo para a doença causada pelo novo coronavírus são encaminhados para tratamento hospitalar, contaram à BBC News Brasil assessores da Secretaria de Saúde da província
de Buenos Aires.
"Os moradores que estão isolados recebem alimentos, atenção psicológica, e contam com apoio para o que precisem", disseram. A bateria de iniciativas, anunciou o governador da província, Axel Kicillof, na quinta-feira (4), inclui assistência social para que sejam evitados registros de violência de gênero durante o confinamento.
© Província de Buenos Aires Moradores diagnosticados
 com o novo coronavírus foram colocados em isolamento,
 para evitar propagação do vírus em comunidade carente
Os demais moradores, do bairro de cerca de 1.200 habitantes, são parados nos controles policiais e sanitários cada vez que precisam entrar e sair do local. A localidade de José Luis Cabezas, a cerca de uma hora do centro de Buenos Aires, é a segunda da província de Buenos Aires, que é a maior da Argentina, a ser alvo da operação de choque contra o coronavírus.
Villa blindada
No dia 24 de maio, outra tropa de médicos, infectologistas e voluntários, vestidos de macacões e tocas brancas e óculos de acrílicos, isolou a Villa Azul, na mesma província. O lugar com cerca de 5.000 habitantes também foi cercado por policiais. A Villa (na Argentina, sinônimo de comunidade carente, de favela) foi blindada depois que o mapa de coronavírus mostrou a curva ascendente de casos e que "sete de cada dez pessoas testadas tinham tido resultado positivo para a doença", de acordo com informação oficial.
Como José Luis Cabezas, que está próxima de grandes conglomerados habitacionais, como Villa Catella, com 15 mil habitantes, a Villa Azul está a poucos metros de uma villa muito maior, chamada de Villa Itatí, que também tem pelo menos 15 mil habitantes, segundo os últimos dados oficiais disponíveis. Foi temendo que o vírus alcançasse os lugares com maior densidade demográfica que os governos locais decidiram cercá-los com o que foi batizado de "cordão sanitário".
Assim que Villa Azul, com casas de alvenaria grudadas umas nas outras e ruelas sem asfalto, com áreas com esgoto a céu aberto, foi bloqueada, alguns moradores disseram à imprensa local que se sentiam eles mesmos bloqueados. Sem poder sair à rua do próprio bairro. Entre os moradores, como ocorre em outras villas de Buenos Aires, muitos são, além de argentinos, imigrantes paraguaios, peruanos, bolivianos e chilenos que chegaram ao país ao longo das últimas décadas.
© Província de Buenos Aires Profissionais de saúde
visitaram residências em comunidade carente para
 prevenir e diagnosticar casos de coronavírus em
 comunidade argentina
Doze dias depois do início da operação, uma moradora disse ao canal de televisão Telefe, de Buenos Aires, que estava preocupada. "Muitos aqui temos trabalhos (considerados essenciais e autorizados a serem realizados pessoalmente). E agora estamos com medo de perder o trabalho. São muitos dias isolados", disse a moradora que se identificou como Valeria. Para o governo, são reclamações isoladas, já que a maioria entendeu a importância da estratégia de evitar mortes pela doença no local. "Eu apoio o isolamento porque se o vírus se expandir aqui, aí sim será pior", disse a moradora Gloria Teresa Guevara à imprensa local.
Na quinta-feira (4), dois homens, moradores de Villa Azul, que já tinham problemas de saúde, faleceram no hospital, vítimas de Covid-19.
A estratégia de apartar uma comunidade inteira é a mesma aplicada nos asilos com casos de coronavírus, disseram assessores do vice-ministro da Saúde, o médico e sanitarista Nicolas Kreplak, que esteve na operação inicial de choque contra o vírus no local. "Temos que reduzir a circulação do vírus, não podemos relaxar", disse Kreplak. O governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, usou uma metáfora para justificar a medida. "É como apagar um foco de incêndio. Um foco que temos que evitar que se esparrame", disse.
"Depredador"
© Província de Buenos Aires Operação de choque
 foi criada para tentar impedir o aumento de
casos do novo coronavírus na Argentina
O infectologista Pedro Cahn, que integra o comitê de especialistas que assessoram o presidente Alberto Fernández, reconheceu que existe um "conflito de direitos", quando um lugar é isolado, mas que existe algo "muito maior" em jogo neste momento. A decisão do isolamento da Villa Azul foi tomada em consonância entre prefeitos, o governador da província de Buenos Aires e Fernández.
"Esse direito (de ir e vir) será recuperado em 15 ou 20 dias, quando a situação ali estiver controlada. Mas enquanto isso estaremos fazendo algo muito maior, que é salvar vidas", disse Cahn à emissora de televisão TN, de Buenos Aires.
Para os infectologistas que assessoram Fernández, o vírus está sendo "depredador" entre os excluídos nas Américas, como afirmou Luis Camera, que também faz parte do comitê especial de combate ao coronavírus. "O vírus foi um depredador dos afro-americanos, em lugares dos Estados Unidos, atingiu Guayquil, no Equador, e Manaus, no Brasil. Na Argentina, felizmente, a mortalidade é baixa. Mas já sabemos que ele ataca aos mais pobres na América Latina", disse Camera. Segundo estudiosos argentinos, no caso específico das comunidades carentes do país, os baixos índices de mortes estariam ligados a idade dos seus habitantes, onde muitos são jovens. Para Camera, o isolamento é uma das poucas ferramentas disponíveis contra a virulência do coronavírus.
Mas a iniciativa de blindagem gerou críticas de setores opositores. "É uma medida que estigmatiza", disse o ex-ministro da Saúde do governo Macri, Adolfo Rubinstein. Setores ligados ao ex-governo de Mauricio Macri, anterior e opositor do atual de Fernández, como o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, têm atuado, porém, em sintonia com as medidas do governo central e da província de Buenos Aires, da mesma linha política do atual presidente argentino.
Um dos líderes do movimento político e social Barrios de Pie, que trabalha no Ministério do Desenvolvimento Social, Daniel Menéndez, disse que a Villa Azul tinha virado "um gueto". Em meio às críticas, o governador Kicillof disse que nenhum lugar estava livre de ser blindado. "Essa medida não é exclusiva dos bairros populares. Elas também podem incluir condomínios ou edifícios. O principal é colocar um freio no vírus", disse.
"Condições difíceis"
A província de Buenos Aires tem cerca de 1,7 mil comunidades carentes reunidas, principalmente, no que é definido como "conurbano bonaerense", que reúne a periferia urbana da cidade de Buenos Aires e parte do território provincial. Nos mapas epidemiológicos, elas representam menos de 20% do total de casos de coronavírus, mas viraram o foco das medidas dos governos pelas condições difíceis em que muitos vivem, sendo impossível o cumprimento do distanciamento social ou até da higienização necessária por falta de água corrente e potável.
Com cerca de 16 milhões de habitantes, a província, que também reúne condomínios de classes média e alta, além de fábricas e produção agrícola, representa em torno de um terço da população de 44 milhões de habitantes do país.
Entre 26 de maio, dois dias depois do início da operação de choque em Villa Azul, e o dia primeiro de junho, foram registrados 519 novos casos de coronavírus na periferia de Buenos Aires, o Conurbano bonaerense. Villa Azul fica no limite entre os municípios de Quilmes (com 259 casos) e Avellaneda (com 155), que estão entre os mais afetados por casos de Covid-19 na província de Buenos Aires. E ela mesma, a Villa Azul, estancou, nos últimos dias, nos 211 infectados de dias anteriores. A situação seria diferente, disseram assessores do governo da província, se a operação de choque na comunidade não tivesse sido realizada.
Na quinta-feira, o presidente Fernández anunciou nova prorrogação da quarentena argentina. Iniciada no dia 20 de março, ela terminará, por enquanto, no dia 28 de junho. Nesta etapa, porém, o maior rigor da quarentena estará concentrado nos lugares com mais casos de coronavírus, como a área metropolitana de Buenos Aires (chamada de AMBA) e alguns lugares do interior do país.
A Argentina registra um dos mais baixos índices de casos na América do Sul, 20.184, com quase seis mil pessoas recuperadas e 608 mortes. Mas o total de testes positivos subiu nos últimos dias, chegando a quase mil diários, sendo 80% na AMBA, o que levou Fernández a anunciar flexibilização nas províncias sem casos do vírus e a manter o rigor, combinado com o prefeito e o governador de Buenos Aires, nas áreas críticas. A cidade de Buenos Aires autorizou, por exemplo, as saídas para correr nos parques, mas somente entre às oito da noite e às oito da manhã. A abertura de comércios também foi autorizada, mas somente para os negócios de bairro.
"Com a curva ascendente de casos não podemos relaxar. Mas sabemos que existe uma questão econômica", disse Fernández. "Sabemos que os pais estão preocupados com as crianças fechadas tanto tempo em casa e também sabemos que fazer exercícios ajuda muito também em termos psicológicos. Mas vamos aos poucos e se for necessário vamos retroceder na abertura", disse Larreta. Até esta semana, após uma das últimas flexibilizações da quarentena na cidade, as crianças podiam sair uma vez, durante uma hora, no sábado ou no domingo, com o pai ou a mãe. Agora, elas vão poder sair nos dois dias do fim de semana, mas sempre perto de casa.

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