Verna
integra grupo que reúne 25 filhos de ex-repressores
da ditadura
(Foto: Arquivo pessoal)
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Legislação
do país não permite que familiares deponham contra parentes em processos;
segundo Pablo Verna, seu pai, médico do Exército, sedou pessoas que foram
arremessadas de aviões.
O advogado
Pablo Verna, de 44 anos, fez um pedido ao Congresso Nacional do seu país, a
Argentina: ele quer que a legislação em vigor, que impede familiares de
denunciarem e prestarem depoimentos à Justiça contra seus parentes, seja
modificada.
Seu objetivo é
ter o direito de denunciar e depor contra o pai, que foi médico do Exército
durante a ditadura argentina (1976-1983). Ele diz que Julio Alejandro Verna,
hoje aos 70 anos, admitiu ter injetado sedativos em vítimas do regime militar
antes que elas fossem lançadas dos chamados "voos da morte", que
arremessavam os prisioneiros ainda vivos em rios ou no mar.
O pai dele está
livre. Questionado certa vez por uma repórter, o médico negou ter sedado
desaparecidos políticos para esse fim. "Não, senhora. De onde tiraram
isso?"
Pablo Verna
integra o Histórias Desobedientes, grupo que reúne 25 filhos de ex-repressores
da ditadura argentina. Leia seu depoimento à BBC Brasil:
"Há muito
tempo eu desconfiava que meu pai tinha cometido crimes na ditadura militar. Nas
conversas em casa, ele demonstrava conhecer detalhes demais dos crimes
cometidos naquele período horrível. Mas quando eu perguntava por que ele sabia
tanto, respondia que eram as enfermeiras que lhe contavam.
Meu pai era
médico do Exército argentino. E com o passar dos anos, baseado no que ele mesmo
me dizia, passei a questioná-lo com tom mais crítico, e de acusação.
Pai de Pablo
Verna (foto) admitiu, segundo ele, ter injetado
sedativos nas vítimas da ditadura (Foto:
Arquivo pessoal)
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Nossa relação
foi ficando cada vez mais tensa. Duas conversas foram aos gritos. Em 2009, eu
já tinha certeza de que ele tinha participado dos crimes. Mas não sabia como.
Não tinha os fatos concretos. Além disso, como filho, acho que queria manter a
dúvida diante de algo tão pavoroso.
Então, em
meados de 2013, em mais uma conversa tensa, ele admitiu que tinha cometido os
crimes. Não lembro as palavras exatas que usei para que admitisse isso. Mas
naquele encontro lembrei o que meu pai tinha contado a um familiar e as
respostas anteriores que tinha me dado cada vez que abordei o assunto. Foi
impossível para ele negar o que tinha feito. E até que me disse: 'foi isso
mesmo'.
Como médico,
meu pai participava dos crimes da ditadura injetando sedativos nas pessoas que
seriam jogadas vivas ao rio ou ao mar. Eram anestesias que as deixavam
imediatamente paralisadas, mas respirando. E quando elas estavam assim, as
jogavam dos 'voos da morte', como ficaram conhecidos.
Meu pai cometeu
outros crimes. Ele também participava dos sequestros dos opositores, dos
militantes sociais e políticos. Foram 30 mil desaparecidos no nosso país. A
ditadura genocida sequestrava e fazia essas pessoas desaparecerem.
Depois daquela
conversa em meados de 2013, ele disse a um familiar que não estava arrependido.
E ainda acrescentou que tinha participado de um caso específico que teve muita
repercussão aqui na Argentina.
Em 1979, quatro
pessoas foram sequestradas e também receberam as injeções de anestesia. Elas
foram jogadas em um riacho, uma simulação de um acidente de carro em uma ponte.
As quatro morreram.
Como médico
militar, meu pai estava sempre armado. Isso até passar para a reserva, em 1983,
com o retorno da democracia no país. E além desses crimes genocidas, certa vez
ele apareceu em casa com uma maleta de primeiros-socorros de médico que não era
dele. Que era de uma das vítimas da ditadura. Eu perguntei porque estava com
duas maletas, e me respondeu que tinha sido um presente. Que uma das maletas
tinha sido de um subversivo.
Na minha casa,
as palavras que ele usava eram chamativas, como 'subversivo'. Eram palavras de
um genocida. Era um discurso ideológico para eliminar os que eram opositores ao
regime militar. Uma vez, disse que os opositores eram mortos porque, quando
eram presos e soltos, ficavam ainda piores.
A nossa relação
foi rompida naquela conversa em meados de 2013, quando meu pai admitiu os
crimes. Mas no dia seguinte ele me ligou para saber se eu tinha contado para
minha mulher. Depois disso, ficamos sem nos falar até pouco tempo - dias atrás,
ele me telefonou para, ao meu ver, fazer ameaças. Também faz isso por meio de
conversas com parentes, cujos relatos chegam até mim.
Eu me afastei
de muitos familiares. Primeiro, para evitar encontrá-lo, e ainda porque uma
parte da minha família se recusa a saber, nega o que ocorreu. Acha que isso é
um problema entre duas pessoas - no caso meu pai e eu. Mas isso não é um
simples problema entre duas pessoas, é entre ele e a humanidade, na qual eles,
os familiares, estão incluídos.
Hoje meu pai
está livre, mas é investigado porque o denunciei na Secretaria de Direitos
Humanos poucos meses depois daquela nossa conversa. Agora o caso dele faz parte
de uma imensa apuração, levada adiante pelos defensores das vítimas na que
ficou conhecida como 'megacausa contraofensiva', pela repressão e extermínio
ocorridos no Campo de Mayo nos anos 1970 e 1980. O local foi um centro
clandestino de prisão e extermínio horrível no nosso país.
Essa casa
deixou poucos sobreviventes e provas. Meu problema hoje, como filho, é que,
apesar de ter essas certezas contra meu pai, encontrei barreiras na legislação
que me impedem de denunciá-lo penalmente. No Código de Processo Penal da
Argentina, existem dois artigos que proíbem que familiares denunciem e deem
depoimento, já no processo, contra outros familiares.
Ou seja, não
podem ser testemunhas contra outros familiares. Por isso, entramos com esse
projeto de lei pedindo que essas proibições não sejam aplicadas para os casos
de crimes contra a humanidade. E assim nós, filhos de repressores, poderemos denunciar
nossos pais judicialmente, além de prestar depoimento contra eles nos
julgamentos.
Nós do coletivo
Historias Desobedientes, que somos filhos e filhas de genocidas, vivemos nas
nossas casas, com nossos pais, a imposição de um mandato de silêncio, de
maneira implícita ou explicita.
Os genocidas
fizeram um pacto de silêncio que cumprem até hoje. Eles não revelam o que
fizeram e o que os outros militares fizeram. Mas depois de muitos anos, e de
conscientização do que aconteceu, e da nossa própria ética, decidimos levar as
acusações adiante. Mas aí nos deparamos com esses artigos da legislação
argentina.
Apresentamos
esse projeto de lei no dia 7 de novembro na mesa de entrada da Câmara dos
Deputados. No nosso grupo, alguns já têm os pais mortos, outros condenados e
outros, impunes.
No meu caso,
espero que meu pai seja investigado. E que ele e os outros genocidas reflitam e
tenham alguma dignidade em seus últimos anos de vida. Que deem um pouco de paz
a tantos familiares que não sabem qual foi o destino de seus parentes
desaparecidos. E paz até para eles, genocidas. Porque eles também devem viver
um inferno em suas mentes e corações.
Nós, como
coletivo, sabemos que nossa iniciativa, com esse projeto de lei, pode ajudar no
contexto das investigações. Coisas que ouvimos nas nossas casas podem aportar
no contexto em que os crimes foram cometidos. Inclusive os casos de roubo que
as vítimas da ditadura sofreram.
Nossa
iniciativa não dará resposta a tudo. Mas pode contribuir para acabar com a
impunidade mantida pelos genocidas."
Por BBC
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