Raphael
Cabral, André Rios e Roberto Santa Rosa,
policiais
reformados (Foto: Acervo Pessoal)
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Desde 1994,
foram 3.397 policiais mortos e 15.236 feridos. Baixas no período custaram R$
2,32 bilhões aos cofres públicos, fora próteses, medicamentos e fisioterapia.
"Viram a
minha farda no banco de trás do carro e gritaram: 'É polícia! Perdeu!' Atiraram
na minha cabeça à queima-roupa", conta o policial Rodrigo Vaz, aposentado
precocemente por invalidez permanente. Foi baleado por bandidos quando voltava
do trabalho para casa. "Só lembro de acordar no hospital com a minha mãe
segurando o meu braço."
Reformado após
apenas três anos de serviço, o ex-soldado ficou cego, perdeu o olfato e o
paladar e desenvolveu graves problemas motores depois de sobreviver, "por
milagre", a um tiro na têmpora direita em novembro de 2013.
Vaz cresceu
cercado de policiais que moravam em seu condomínio, na Zona Oeste do Rio.
Adulto, resolveu seguir os passos dos heróis de sua infância.
Aos 34 anos,
ele agora sofre de depressão e gasta toda a pensão da aposentadoria com
remédios - para dormir, para a cicatrização do cérebro e para controlar as
convulsões.
"Como
policial, eu me sentia feliz por poder combater o crime e proteger direitos e
deveres da sociedade. Eu me sentia útil", lembra.
"Hoje, eu
só choro. Estou vivo ainda, mas a minha vida foi desmantelada", diz.
"Eu não posso ver as pessoas na rua, o rosto da minha mãe, dos meus
sobrinhos. Sou fanático por cinema, mas não posso ver um filme."
'Legião de
mutilados'
Em meio à ampla
comoção gerada pelas mortes de policiais no Rio - só neste ano, já foram mais
de 60 vítimas fatais -, há um grande contingente de policiais feridos que
conseguem sobreviver e são frequentemente esquecidos pela sociedade.
Em 2017, de
acordo com os cálculos da Comissão da Análise da Vitimização Policial, 163 PMs
foram mortos em serviço ou de folga no Rio.
Já o número de
feridos chegou a 784, o maior desde 2003. Somando os dados dos últimos cinco
anos, 3.342 policiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)
sofreram ferimentos - alguns tiveram lesões mais leves e puderam voltar ao
serviço, enquanto outros ficaram com danos permanentes, caso de Vaz.
"Você tem
uma legião de mutilados, paraplégicos, tetraplégicos, pessoas sem uma parte da
cabeça, que de repente se veem de cama, dependendo de sondas, fraldas, cadeiras
higiênicas", diz o coronel Flávio Cajueiro, presidente da Comissão da
Análise da Vitimização Policial e à frente da Diretoria de Assistência Social
da PMERJ.
A comissão
acompanha as baixas na corporação há 24 anos e diagnostica "décadas de abandono".
Em quase um quarto de século, foram 3.397 policiais mortos e 15.236 feridos,
nos cálculos da comissão, que contabiliza todos os casos de mortes ou
ferimentos não naturais, sejam em confrontos ou acidentes de trânsito.
"São
pessoas no calor da juventude. Pela idade média, a maioria de mortos e feridos
na PM são pessoas que teriam ainda 20 anos de serviço pela frente", afirma
Cajueiro.
Rodrigo Vaz
antes e depois do confronto que lhe
tirou os
sentidos (Foto: Acervo pessoal)
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"Imagina
o custo que isso representa na folha de pagamento do Estado no longo
prazo", diz o coronel.
Nos cálculos da
comissão, as baixas que a polícia sofreu nos últimos 24 anos custaram R$ 2,32
bilhões aos cofres públicos - isso sem contabilizar gastos com próteses,
medicamentos, fisioterapia, injeções e internação hospitalar, entre outros.
"É um
custo que o Estado e a PM estão tendo e que poderia ser evitado com
investimentos em prevenção. Em uma estrutura melhor para a polícia, em leis
mais duras para coibir a impunidade. E, obviamente, em investimentos
sociais", afirma.
"Estamos
empilhando corpos e mentes perturbadas. Isso é muito grave", emenda
Cajueiro.
'Em segundo
plano'
Rodrigo Vaz era
lotado na UPP dos morros do Adeus e da Baiana, no Complexo do Alemão, na Zona
Norte do Rio. Como policial, diz, foi um "combatente". Hoje, só
consegue ir sozinho da sala para o quarto e do quarto para a sala. Passou a ser
quase totalmente dependente de sua mãe, Regina Vaz, que largou o trabalho para
cuidar dele.
"O Estado
não se importa nem um pouco", diz Regina. "Quando me entregaram ele
na saída do hospital, eu pensei que continuariam por perto me ajudando. Levou
uns seis meses para cair a ficha que eu estava sozinha com ele em casa. Ninguém
ia me procurar", conta ela.
Os amigos
buscam animar Vaz e fazê-lo sair de casa. "Mas ir para a rua me magoa
mais. Fico triste de ouvir o barulho das pessoas e não poder ver", lamenta
o ex-soldado. "Se eu pudesse voltar a enxergar, eu seria o homem mais
feliz do mundo."
Abandono dos
feridos
A situação de
Vaz ecoa outros casos como o dele. De acordo com o policial reformado André
Rios, policiais aposentados por invalidez sofrem com a escassez de recursos,
com falta de assistência e com entraves legais e burocráticos para ter acesso a
benefícios.
"Ficamos
em segundo plano", diz Rios, que ficou paraplégico após ser atingido por
quatro tiros em 2003, depois que bandidos fecharam seu carro para um assalto e
o identificaram como policial.
"Para cada
um que morre, uns seis policiais ficam gravemente feridos. O impacto é enorme,
e o gasto que a administração pública tem com isso é astronômico", diz
ele, que virou um forte defensor dos direitos de policiais feridos e está
prestes a se formar em Direito.
De acordo com a
PMERJ, os policiais são vítimas do mesmo cenário de violência que os demais
cidadãos fluminenses - com o agravante de que, quando um agente de segurança é
identificado como tal, o criminoso busca eliminá-lo.
Em nota, a
corporação afirma que uma das ações principais para reduzir os danos aos
policiais é trabalhar para ampliar o policiamento ostensivo de uma maneira
geral e, assim, "dar mais segurança aos cidadãos e aos policiais".
Entre as ações
tomadas neste sentido, a Polícia Militar cita a aquisição de novas viaturas, o
retorno do Regime Adicional de Serviço (uma espécie de hora extra oficial) e
treinamentos específicos voltados para reduzir comportamentos que podem colocar
policiais em risco - como, por exemplo, um curso voltado para treinar o porte
velado de armas durante horários de folga. "Além disso, todos os policiais
militares de unidades da Região Metropolitana estão autorizados a utilizar seus
coletes balísticos em dias de folga", diz a nota da PMERJ.
Décimo
ferido da equipe em um ano
Raphael Cabral
foi contemporâneo de Rodrigo Vaz no curso de formação policial, trocando o
terno e gravata que usava para vender colchões em uma loja pela farda azul da
PM. "Eu ganhava bem, mas não ia conseguir fazer aquilo a vida inteira.
Achei que na polícia eu poderia fazer diferença para a sociedade."
Assim como Vaz,
Cabral acabou trabalhando em uma UPP, a da Vila Cruzeiro, na Zona Norte. E,
assim como o amigo, também saiu precocemente, após ter a perna esquerda
amputada. Em janeiro do ano passado, foi atingido por uma granada em confronto
com traficantes na favela, e só sobreviveu porque sua equipe o socorreu e
estancou o sangramento com um torniquete mesmo sob intensa troca de tiros.
Sobrou "só um palmo de perna", conta ele.
Raphael
Cabral: "25 dias internado, cinco cirurgias, três paradas
cardíacas,
doze bolsas de sangue e quatro colônias de bactéria"
(Foto: Acervo Pessoal)
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"Em menos
de um ano, eu fui o décimo da equipe (de 23 pessoas) a ser ferido. Tinha
tiroteio pelo menos três vezes por dia", diz Cabral, que à época tinha 28
anos. Ele completou seus seis anos de polícia no hospital.
"Foram 25
dias internado, cinco cirurgias, três paradas cardíacas, doze bolsas de sangue
e quatro colônias de bactéria", enumera.
Cabral foi
pentacampeão carioca de taekwondo e ensinou a luta para mais de 200 crianças na
primeira UPP em que foi lotado, no Morro do São João, na Zona Norte do Rio.
"Naquela época, ainda tomávamos café com os moradores e dávamos aulas em
projetos sociais", lembra ele. "O meu melhor chute era a perna
esquerda". A perna foi substituída por uma prótese.
"Eu já
tinha aceitado que morreria em breve. Sabia que mais cedo ou mais tarde uma
daquelas munições ia me acertar. Por eu estar conformado, perder uma perna não
foi nada para mim", diz.
Auxílio-invalidez
seletivo
Cabral teve uma
boa notícia nesta semana: foi, enfim, publicada no Diário Oficial do Estado do
Rio de Janeiro a autorização de seu auxílio-invalidez, um pagamento mensal de
R$ 3 mil.
Ele diz que o
auxílio vai lhe dar "uma vida mais digna", mas está longe de
compensar a perda de um membro "nessa guerra que ninguém ganha", diz.
Já Rodrigo Vaz
ainda não obteve o mesmo benefício e está lutando na Justiça.
O motivo é que
Cabral é um caso de amputação, enquanto Vaz levou um tiro na cabeça. A Lei
6.764 garante o auxílio por invalidez em casos de paraplegia, tetraplegia ou
amputações, mas não para outros tipos de ferimento.
"A lei é
malfeita", diz o coronel Cajueiro. "Se você for ferido em combate e
perder um dos membros, ou se tornar cadeirante, recebe o auxílio. Mas se ficar
com um buraco na cabeça, tiver convulsões, precisar substituir parte da calota
cranial com próteses caríssimas, não recebe", critica.
Em 2014, a
Assembleia Legislativa do Estado do Rio adicionou um parágrafo à lei que, em
tese, estende o benefício a outros casos de invalidez física ou mental
permanente. Mas a Procuradoria-Geral do Estado questionou a constitucionalidade
da mudança, que está suspensa até que tribunais superiores deliberem a
respeito.
'S.O.S.
Veteranos'
Diante da
solidão que se impõe aos inativos por invalidez, muitos buscam apoio em redes
sociais ou grupos de WhatsApp - como o "S.O.S. Veteranos", que tem
quase 80 ex-policiais afastados permanentemente. São cegos, amputados,
lesionados na cabeça, tetraplégicos e paraplégicos, diz André Rios.
"As
interações são importantes porque as pessoas ficam muito sozinhas", diz.
"No início, ficam totalmente perdidas. Não sabem como proceder. Estão
entrando em um mundo novo. Quem é solteiro acha que nunca mais vai arrumar
mulher, quem é casado teme pelo futuro do relacionamento. Mas quando veem os
outros casos, entendem que há vida após o ferimento. Veem que dá para
encarar."
Rios, Cabral e
Vaz não perderam o orgulho da profissão, mas mudaram, cada um à sua maneira,
seu olhar sobre a atividade policial no Rio.
"É uma
guerra muito injusta. A polícia não tem subsídios, não tem material humano nem
bélico para viver essa guerra. Estamos em guerra, mas ninguém assume", diz
Rios.
Vaz sente mágoa
em relação a um Estado que "não dá condições para a polícia
trabalhar" e "não dá subsistência" quando policiais ficam em
estado como o dele. Aos mais jovens, aconselharia não entrar para a polícia.
"A sociedade é hipócrita, não merece os policiais que tem. São homens
guerreiros que dão sua vida para ela. As pessoas não os reconhecem."
Já Cabral diz
ter desistido do Brasil. Depois de ter a perna amputada, passou por três outras
situações de "quase-morte" - incluindo a fuga de um arrastão na
avenida Brasil, e disparos contra seu carro ao entrar em uma favela por engano
seguindo indicações do GPS. Agora, faz planos de sair do Brasil com a família.
Para ele, ficar é estar "na fila da morte".
"O meu
filho de 4 anos repete diariamente que quer ser policial. Apesar de eu ser
apaixonado pela PM, não o incentivo. Ele pode ser policial em outro país",
diz Cabral. "Essa sociedade não merece o trabalho do policial. Não sabe o
preço que nós pagamos."
Por BBC
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