Moradias populares em prédios
vazios, abordagem familiar, flexibilização de regras de albergues sociais são
algumas das ações sugeridas para solucionar a questão rapidamente, impactando
questões como segurança e turismo
Dando continuidade à série de
reportagens sobre problemas da cidade de São Paulo — na
qual já discutimos o aumento
da violência e sensação de insegurança e os roubos
por falsos entregadores — tratamos agora do aumento do número de pessoas vivendo nas ruas.
Segundo a Secretaria
de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura de São
Paulo (SMADS), a cidade possui atualmente 31.884 pessoas nessa
condição. O dado é do Censo da População em Situação de Rua,
divulgado em janeiro deste ano. O número cresceu 31% em relação a 2019,
quando havia 24.344. O aumento numérico, de 7.540 pessoas, é equivalente a toda
população em situação de rua do Rio de Janeiro. O
contingente total já ultrapassa o número de habitantes de 69,9% das cidades
paulistas. Segundo a gestão municipal, a piora no quadro reflete os impactos da
pandemia de Covid-19 e a crise econômica enfrentada pelo país. O problema
produz uma série de consequências para a cidade, com impactos nas áreas da
segurança pública e do turismo. Especialistas ouvidos pela Jovem Pan defendem
que o fato deve ser encarado de forma abrangente, com um acolhimento que
ofereça não apenas moradia, mas também oportunidades de trabalho e educação,
para que seja possível criar e manter um outro modo de vida.
A pernambucana Grasiely
Torreiro, de 34 anos, mora no centro de São Paulo desde 2019, e acha que o
aumento do número de pessoas vivendo nas ruas nos últimos anos é evidente.
“Circulando pelas ruas do centro antes e depois da pandemia, é notório o
aumento do número de pessoas [vivendo] nas ruas. Eu entendo que é uma questão
de políticas
públicas, mas eu não tenho como não sentir medo, principalmente por ser
mulher. Não quero passar uma visão higienista, mas não tenho como não sentir
medo. Essas pessoas já estão numa situação de extrema violência, à margem da
sociedade, então acabam não tendo muitas escolhas [além do crime]”, comenta.
“Entendo que nem todos os moradores de rua representam ameaças. Sei que há
pessoas lá apenas tentando sobreviver ao caos, querendo apenas se alimentar ou
manter o vício [em drogas], mas também há pessoas que acabam machucando,
roubando. Eu evito circular no centro à noite”, afirma.
Segundo a turismóloga Raquel
Avelino, o crescimento do número tem outra consequência além do amedrontamento
da população: um recuo da capacidade turística da capital paulista. “É muito
comum que haja no desenvolvimento de um destino a higienização da paisagem,
seja ela natural, urbana, rural. Existe a necessidade de higienizar o local
para que fique prazeroso aos olhos dos visitantes. É muito provável que isso
gere um efeito negativo na atividade turística, porque esse espaço já não está
mais tão limpo e prazeroso para a vista das pessoas que vão chegar na cidade.
Os turistas não chegam onde as pessoas realmente moram, eles não vão para as
zonas mais afastadas, onde a população mora em massa, porque nesses locais não
acontece essa higienização. Esses locais não estão prontos para receber o
turista. Quando ocorre o processo inverso é esperado que o turismo recue”,
explica.
Apesar de a Prefeitura de São
Paulo citar a pandemia da Covid-19 como um dos causadores do aumento da
quantidade de pessoas vivendo nas ruas, a professora de sociologia da Universidade de
São Paulo (USP) Eva Alterman Blay, defende que a
situação foi apenas acentuada pela crise sanitária, e não provocada
especificamente por ela, que a realidade vem piorando há muito mais tempo e por
diversas questões. “Estamos vivendo um processo de completa desestabilização
econômica, do emprego, da indústria, da incorporação da mão de obra rural,
enfim. Nesse governo, há uma grande redução das possibilidades de emprego. E,
nos grandes centros urbanos, e acho isso terrível, o lixo é o objeto que
permite às pessoas comer e trabalhar. Há uma total cegueira de política de
emprego, trabalho e produção. Vemos cada vez mais famílias inteiras morando nas
ruas. Há dez anos, a gente não via crianças nas ruas como vemos hoje. Havia
políticas para elas, crianças tinham onde ficar, escolas e creches”, disse à
reportagem. “Quando começou a pandemia, as pessoas se organizavam para doar
comida para os mais vulneráveis. Então, não iria haver roubo. Hoje, as pessoas
já não estão mais doando. As pessoas [que estão vivendo na rua] querem
trabalhar, querem emprego, escola, moradia. Se não recebem nada disso, fica
difícil”, acrescenta. O cometário corrobora a informação da Secretaria de Segurança Pública do
Estado de São Paulo (SSP-SP), segundo a qual houve uma queda
na criminalidade de 2020 para 2021.
Entre as possibilidades para
resolução da situação, Blay fala da necessidade de utilização de prédios
desocupados. “Existem prédios inteiros vazios no centro de São Paulo, como na
rua Augusta, por exemplo, um hotel inteiro, com banheiro, tudo, completo. Porque
essas pessoas não podem morar nesses lugares? Outros países resolveram isso com
esse tipo de política urbana. A propriedade não é privada, é da cidade, ela
ocupa de maneira privativa um espaço que é da cidade. Um prédio vazio está
ocupando um espaço público”, argumenta a professora. O advogado Ariel
de Castro Alves, especialista em políticas de direitos humanos e segurança
pública pela PUC de São Paulo,
afirma que a solução sugerida pela socióloga é, inclusive do ponto de vista
legal, uma alternativa viável para remediar o problema de forma rápida. “Há uma
série de edifícios no centro de São Paulo que estão vazios e sem utilização,
edifícios públicos, do governo federal, que poderiam ser cedidos para moradia
de maneira mais simples. Há também prédios privados que são devedores de IPTU e
que poderiam ser desapropriados para serem utilizados como moradia popular”,
diz.
Castro Alves destaca, ainda, a
necessidade de aprimoramento de albergues sociais, que recebem as pessoas que
vivem nas ruas para dormir a noite. “Muitas pessoas deixam esses espaços porque
há regras que as impendem de entrar lá com seus animais de estimação, por
exemplo. E há leis que proíbem que isso ocorra. Não basta dar uma cama. É
preciso que essas pessoas possam entrar com seus animais, com carroças com as
quais trabalham, que tenham armários para guardar seus pertences. É preciso
entender o caso e a necessidade de cada um”, resume. Outra alternativa
defendida pelo advogado é a regularização de ocupações no centro da cidade: “Há
edifícios ocupados que, se fossem regularizados, poderiam abrigar mais pessoas
e retirar muitos da situação de rua, principalmente nesse momento de maior
vulnerabilidade, por causa do frio”.
O especialista em direitos
humanos também lembra que a questão deve ser encarada pelo poder público de
forma abrangente, entendendo que cada pessoa que vive na rua tem questões
específicas a serem resolvidas e atendidas, como os casos de indivíduos com
transtornos mentais ou os que são usuários de álcool e outras drogas. “Não
adianta apenas abordar as pessoas nas ruas. Todo mundo tem família, é preciso
que elas também sejam abordadas para tentar incluir novamente essas pessoas no
núcleo familiar (…). Além disso, muitas dessas pessoas que vivem nas ruas
precisam de acompanhamento para que possam se readequar a uma vida fora das
ruas. Muitos são egressos do sistema prisional e possuem necessidades por
documentações. Essas pessoas precisam de capacitação, escolaridade, emprego”,
pontua.
No site da Prefeitura de São
Paulo, a atual gestão informa que, após a realização do Censo da População em
Situação de Rua, foi lançado um novo programa, o Reencontro, que visa amenizar
o problema. A ação “prevê moradias transitórias e ações para acolher, a curto e
médio prazos, milhares de pessoas que foram para as ruas desde o início da
pandemia (…), maior oferta de vagas na rede municipal, um tripé de moradia
formado por locação social, renda mínima e moradia transitória, além de
capacitação profissional e intermediação para o encontro de postos de
trabalho”. Segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB), o programa já possui imóveis
reservados para a criação de moradias transitórias.
Por Pedro Jordão
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