Pinheiros,
papais noéis e decoração natalina retornam à cidade. Professor Ali Al-Baroodi
decidiu usar hobby de fotógrafo para documentar a volta de Mossul à
normalidade.
Em meio aos
esforços para reerguer a infraestrutura de Mossul após o fim de três anos de
controle do Estado Islâmico, pinheiros de plástico adornados, papais noéis,
bonecos de neve e outras decorações natalinas tomaram conta das ruas neste fim
de ano. Para registrar o retorno do Natal, dos cristãos e da diversidade
cultural da cidade iraquiana, Ali Al-Baroodi, um professor de 36 anos, decidiu
fotografar o fenômeno, que não acontecia desde 2014.
"Costumávamos
comemorar o Natal em Mossul antes de 2014. Mas agora as pessoas sentem uma
obrigação moral de expressar sua solidariedade com os cristãos." - Ali
Al-Baroodi
Em entrevista
por telefone ao G1, ele
explicou que, no último sábado (16), reparou de repente no clima natalino na
parte leste de Mossul, onde ele nasceu e onde vive.
"Estava em
um táxi e de repente vi árvores de Natal. Pisquei algumas vezes. Achei meio
estranho ver aquilo de novo depois de tanto tempo. Então fui para casa, peguei
a câmera e andei de bicicleta por 25 quilômetros", lembra ele. "Fui
até a beira do rio, entrei em cassinos e lojas, pedi educadamente para tirar
fotos, e todos deixaram."
Depois de tirar
as fotos, ele decidiu publicá-las em seu perfil no Twitter, uma maneira de mostrar
ao mundo o retorno da diversidade de credo após três anos de intolerância
religiosa implacável.
A fotografia
como registro histórico
Formado em
inglês, Al-Baroodi é professor de estudos da tradução na Universidade de Mossul
e tinha a fotografia como hobby, e a natureza como seu tema preferido. Mas,
depois que os jihadistas do Estado Islâmico tomaram o controle de Mossul em
junho de 2014, ele virou um fotógrafo freelancer e passou a apontar sua câmera
para a destruição provocada pelos radicais islâmicos, que impuseram a Sharia, a
lei islâmica, e passaram a perseguir quem a desrespeitasse.
"Não saí
de Mossul, desde junho de 2014", afirmou Al-Baroodi. "Tomei a decisão
de que, se sobrevivesse ao EI, iria contar a história de Mossul através da
fotografia."
Inicialmente,
diz ele, o Estado Islâmico não exigiu que os cristãos deixassem a cidade, mas
anunciou que cobraria um imposto extra deles. "Isso é absurdo. Sempre
pagamos a mesma quantidade de impostos para o governo", disse ele.
Por causa dessa
imposição, os cristãos, que não eram maioria, mas conviviam em harmonia em
Mossul e chegavam a ser maioria em diversos bairros próximos de igrejas,
decidiram deixar Mossul e se abrigar em algumas cidades vizinhas na mesma
província de Nineveh, onde cristãos representam a maioria.
"Mas em
agosto, o Estado Islâmico tomou o controle de toda a província, das cidades dos
azidis e cruzando a fronteira até a Síria", afirmou Al-Baroodi. Os
cristãos, então, precisaram se refugiar no Curdistão, em acampamentos
improvisados ou viajar a pé até outros países seguros.
"Foi
bom os cristãos terem fugido. Se tivessem ficado em Mossul, coisas horríveis
poderiam ter acontecido com eles."
Intolerância
religiosa
O professor
explica que Mossul sempre foi uma cidade diversa cultural, étnica e
religiosamente. "É uma cidade singular", diz ele, citando uma
variedade de correntes do islã que sempre conviveram em paz, como os sunitas,
os xiitas e os sufistas. "Entre as etnias temos árabes, curdos,
turcomenos, sírios. E até a década de 1950 tínhamos milhares de judeus. Na
Cidade Antiga temos uma rua que se chama Travessa dos Judeus. Em 1914, os
judeus representavam um terço da população de Bagdá", lembra Al-Baroodi.
Segundo ele, os judeus iraquianos foram evacuados depois da criação do Estado
de Israel.
"Na
faculdade, meu orientador era cristão. Eu tinha um vizinho cristão e outro
vizinho xiita. Eu tinha um amigo de Bagdá e passei anos sem saber que ele era
xiita. Não tínhamos problemas até 2003", diz Al-Baroodi.
Em Mossul, a
maioria da população é sunita, mas em Bagdá e no resto do Iraque, os xiitas são
maioria. Até 2003, quem governava o país era o ditador Saddam Hussein, um
sunita. Em 2003, após o 11 de Setembro, os Estados Unidos depuseram Hussein e
os xiitas tomaram o poder, e submeteram os sunitas a condições inferiores de
acesso a emprego e renda. A animosidade entre as duas correntes chegou ao seu
ápice com o surgimento do Estado Islâmico, que aproveitou a divisão para ganhar
terreno entre sunitas.
Porém, a
perseguição promovida pelos jihadistas não se resumiu a alguns grupos. Os
cristãos e xiitas precisaram fugir, os homens yazidis, uma minoria de curdos
que segue uma religião específica, foram mortos e as mulheres, escravizadas.
Mas, depois, o EI se voltou contra os próprios sunitas, que eram presos,
torturados e mortos por "desvios" como se atrasar para as rezas,
fumar ou ouvir música.
"Queremos
mostrar que o Estado Islâmico não representa Mossul. Eles são uma proporção
muito pequena de muçulmanos." - Ali Al-Baroodi
Cidade
dividida em duas
Conhecida como
"Mossul do Leste", essa parte da cidade foi construída há menos de 80
anos, como um resultado da expansão populacional para fora da fortaleza ao
redor de Mossul. Ela sofreu danos consideravelmente menores do que a Mossul do
lado oeste do Rio Tigre, onde fica a Cidade Antiga e onde os carros-bomba do EI
e os bombardeios da coalização na guerra pela retomada da cidade deixaram um
enorme rastro de destruição.
"Você não
pode dizer que existe apenas uma Mossul", diz Al-Baroodi.
"A
parte leste está florescendo de novo, quase de volta ao normal. Mas a Mossul do
Oeste é uma história diferente. As pessoas ainda estão tirando os corpos de
seus familiares mortos dos escombros de suas casas."
Retorno à
normalidade
Embora a perda
de vidas e a destruição de edifícios históricos, como a Grande Mesquita de
al-Nuri, construída há 830 anos, seja irreparável, Al-Baroodi diz que os
iraquianos de Mossul tentam retomar a vida da cidade. "Essa é a cidade da
sobrevivência, da coexistência e da diversidade", defendeu o fotógrafo.
Também em
dezembro, ele registrou em fotos uma celebração dos dançarinos folclóricos
turcomenos, que, pela primeira vez em anos, puderam vestir suas roupas
tradicionais em público e realizar uma de suas danças típicas:
"Meus
alunos cristãos vêm em bandos para Mossul todas as manhãs para a universidade.
Mas nem todos os habitantes estão de volta. Eles ainda estão um pouco
cautelosos sobre o que vai acontecer."
Aos poucos,
porém, as tradições proibidas por tanto tempo dão sinais de que a harmonia
entre as diferentes religiões volta a se concretizar. Ele afirmou que, na
última quarta-feira (20), se emocionou ao chegar à sala de aula e se deparar
com uma surpresa de um grupo de alunos: eles montaram e decoraram uma árvore de
Natal, com luzes coloridas e uma estrela na ponta, que virou o adorno da
classe.
Por Ana Carolina Moreno, G1
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