Documentário
traz histórias de quem convive com
a violência no Alemão e na Penha
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Documentário em cinco capítulos
mostra imagens inéditas da ocupação, números chocantes e flagrantes de
abondono. Infográfico do G1 mostra crimes antes e depois da ocupação.
Durante dois meses, a repórter Bette
Lucchese e os cinegrafistas Piero Caputo e Júnior Alves mergulharam na
realidade dos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio. A vida
difícil, o medo constante, o desejo de paz, que para muita gente está tão
longe. O que deu errado no projeto das UPPs? O que aconteceu com a promessa de
pacificação?
Em busca destas respostas, eles
ouviram moradores, autoridades, especialistas em segurança e líderes
comunitários. O documentário "Complexo" - em cinco capítulos - traz a
partir desta segunda-feira (5) imagens inéditas da ocupação, números chocantes,
flagrantes do abandono dessa região do Rio. E começa pelo que mais dói nos
moradores: os sonhos perdidos.
Em 2010, quando a polícia ocupou a
região, moradores celebravam com bandeiras brancas nas janelas, gente vibrando
nas ruas. Imagens mostravam a ocupação policial na região conhecida como
Coqueiral. Todos acreditavam que, como a música que tocava no radinho de pilha
de um morador, “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”.
A equipe do RJTV registrou cada
passo daquela cobertura histórica, com o helicóptero da polícia carregando a
bandeira do Estado do Rio de Janeiro. Era o momento da mudança, da libertação.
Aquele 28 de novembro de 2010 está
cada vez mais distante. Em todos os sentidos. Hoje, jornalistas não podem
entrar no Coqueiral nem em outras áreas dos complexos do Alemão e da Penha. O
sonho da pacificação não se tornou realidade. Os moradores voltaram a conviver
com a violência, com os tiroteios praticamente diários. E ninguém se conforma
com isso.
Aquele domingo, sete anos atrás,
foi dia de nascimento. “Era um medo misturado com alegria. Porque é minha
primeira filha. Eu não esperava que fosse nascer assim”, contou uma mãe do
Alemão.
Há sete anos, um carro blindado do
Exército acabava de chegar, dando apoio ao efetivo que estava chegando. Havia
tiroteio. O helicóptero passava em voo rasante. Os blindados entravam na favela
para a retomada do território.
“Era helicóptero sobrevoando a
casa da gente, era tiros toda hora”, contou a moradora do Alemão Juliana Brito,
grávida na época. “Ela [a filha, Sabrina] também mexia demais quando eu
escutava os tiros, não sei se a tensão minha acabava passando para o bebê.
Então, assim, foi muito tenso mesmo”.
Tenso mesmo, e assustador. As
dores para Juliana chegaram antes da hora. Aos seis meses de gravidez, Juliana
estava na sala de parto. Enfrentava um enorme desafio. E o Alemão também.
“Pode ser que tenha sido a tensão.
Acabou resultando no nascimento prematuro dela. Ela nasceu com 870 gramas”,
conta Juliana.
“Ah, foi emoção total, sem
explicação”, completou o pai, Anderson Silva, lembrando que a filha Sabrina
cabia na palma de sua mão.
A pequena Sabrina, do Alemão,
chegou lutando pela vida. Foram três meses no hospital, até o dia de conhecer a
casa nova. Era a felicidade de uma família, somada a de tantas outras que
viviam na mais nova área pacificada do Rio.
“Em 2010 todo mundo esperava...
'Caraca, agora de fato não vai ter mais tiroteio. A gente vai conseguir ir para
a escola, trabalhar, fazer nossas coisas tranquilamente. Uma esperança muito
grande”, diz René Silva, do jornal comunitário Voz das Comunidades.
"Sou chefe de família, tenho
uma filha, e estamos esperando um garoto. As marcas de bala deixadas pela
guerra estão na parede da minha casa. Esperamos e torcemos por mudanças",
dizia a carta de um morador.
Grandes também eram os sonhos,
tanto no Alemão, quanto na Vila Cruzeiro. Por mudanças. Quantas cartas com o
mesmo desejo chegaram até a TV. Estão guardadas nos arquivos do projeto
"Memória Globo". E, ao longo desse documentário, ganharão vozes.
"Estou muito feliz, porque as
crianças vão ter um futuro melhor. Mas tem que ter vários projetos do governo!
Se Deus é por nós, quem será contra nós?"
Quase sete anos depois, Sabrina é
sapeca e sorridente - é uma criança feliz. A mãe acredita que ela ter nascido
no dia da ocupação do complexo podia ser uma esperança de mudar a situação do
lugar. Segundo a mãe, era uma esperança de vida também.
“Era um ciclo de vida que estava
se iniciando na minha casa. E para todas as outras pessoas que também moram
dentro da comunidade”, disse Juliana.
Aos 6 anos, Sabrina Silva aprendeu
depressa os problemas que existem na comunidade. “A cidade está muito violenta,
muita gente morrendo. Então, a gente tem que ter mais um pouco de calma.
Prestar mais atenção para onde anda. E tem gente que perdeu até a mãe”, disse a
menina.
E são muitas perdas. Nesse Alemão
que permanece embalado pela mesma trilha sonora, de som de tiros.
“Desde o primeiro mês de 2017, a
gente começou a fazer essa contagem, e a gente sempre faz esse balanço no final
do mês. O mês de janeiro a gente teve mais de 50% dos dias tendo confronto, o
mês de fevereiro teve tiros todos os dias, do primeiro ao último dia do mês,
não teve um dia sequer sem tiroteio. O mês de março, por exemplo, a gente só
teve três dias em que não teve tiroteio. Um no final de semana e outros dois em
dois dias seguidos, durante a semana. Todos os outros dias teve confronto”, diz
Lana de Souza, do coletivo Papo Reto.
2,6 mil mortes violentas em 15
anos
Em abril, apenas nove dias sem
tiros. Em maio, só 11. Um levantamento feito pelo núcleo de jornalismo de dados
da Globo mostra o número de mortes violentas na região dos complexos do Alemão
e da Penha, nos últimos 15 anos. Foram 2.622 vítimas entre 463 mil moradores,
segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP).
O número é três vezes maior que na
Zona Sul, que tem o dobro de moradores: segundo o ISP, são 973 mil pessoas, e
724 mortes em 15 anos. A Anistia Internacional também revela: de 5 de junho de
2016 a 5 de maio deste ano foram 51 mortos, entre eles quatro policiais
militares. Dos 95 feridos, 32 eram PMs.
Eu acho que se tem uma coisa que a
gente, enquanto morador, enquanto moradora, é violado todos os dias é o nosso
direito de viver”, diz a moradora.
Direito de viver. Vejam o que diz
a Letícia Vitória Guimarães, de 7 anos: “Eu queria ver se não tivesse mais
nenhuma guerra. Paz, eu não sei direito o que é paz. Eu acho que é um pedido
para fazer as pessoas pararem de virar bandidos. Um pedido para as pessoas
serem felizes. É bom né, rir, brincar... poder brincar a vontade”.
Letícia tem apenas 7 anos, mas
falando assim parece até gente grande. Ela conta que ela e a irmã Geovanna vão
dormir no quarto da mãe quando tem tiros. E que fica com medo. E que depois de
ir para o quarto da mãe, colocam o colchão no chão da sala, onde é mais seguro
dormir.
“Não tem sossego nem para comer. A
gente tem que comer no chão, não pode nem comer na mesa. A mesa é de frente
para a UPP e lá pode bater tiro. Então, a vovó manda a gente ficar no chão da
sala. Não é legal... e ninguém merece. Criança tem de ser feliz. Eu sinto
tristeza. Eu sinto tristeza e eu fico um pouco um pouco estranha. Eu sinto que
o mundo vai acabar”, disse a menina.
Raul Santiago, do Coletivo Papo
Reto, descreve a rotina atual dos moradores: “ Hoje a gente aqui gravando e
está tendo tiro desde 6h. Então, antes de sair de casa, a gente não procura
saber sobre a reunião, o lugar que a gente tem que ir, se vai rolar aquele
encontro. A gente procura saber se está dando tiro, se a gente vai conseguir
sair, se as crianças vão conseguir ir para a escola”.
“Os confrontos são diários, né? A
tal bala perdida é sempre achada por uma pessoa que não tem nada a ver com essa
guerra ela sempre vai encontrar um conhecido, um amigo, uma pessoa que a gente
nunca viu, mas é uma vida. Então, eu acho que a minha maior angústia é de
perder vidas que são parte da minha vida”, disse Lana, também do Papo Reto.
Mariluce Maria Souza, do Instituto
Favelarte, diz que a
morte do menino Eduardo de Jesus, em abril de 2015, foi um trauma
para as crianças e impactou muita gente na comunidade, porque todo mundo pensou
que poderia ser seu próprio filho. E não só na favela, mas no Brasil inteiro
todo mundo se colocou no lugar da mãe, Terezinha Maria de Jesus.
Terezinha, a mãe que simboliza os
sonhos perdidos, deixou o Alemão. Hoje, ela vive no Piauí, a quase dois mil
quilômetros do Complexo do Alemão.
“Eu pensei assim: já perdi um
filho e vou ficar nesse mesmo lugar para perder o outro? Eu não vou aguentar.
Então é melhor vir para minha terra natal, que pelo menos aqui é mais calmo,
não é igual lá no Rio. Aquele 2 de abril de 2015 foi o pior dia da minha vida,
eu jamais imaginaria perder um filho do jeito que eu perdi o Eduardo. Tava com
o celular na mão. Quando ele sentou na porta, foi questão de segundos. Eu vi um
estouro e uma fumaça na minha porta. Meu Deus, o que aconteceu? Eu nunca
imaginaria que era meu filho. Aí eu entrei em desespero e quando eu olho pra
trás estava uma fileira de policiais enfileirados na outra escada. Aí eu
larguei o Eduardo e parti pra cima dele. Eu segurei no colete do policial e
falei 'Você matou meu filho'. E ele respondeu assim: 'Como eu matei, posso
muito bem te matar, eu já matei um filho de bandido”, contou Terezinha.
Eduardo de Jesus tinha 10 anos.
Para essa mãe, é uma ferida que não cicatriza.
“Todo dia um jovem. É uma criança
que vai embora e a gente que já passou por isso, a ferida volta a sangrar de
novo. Porque é mais uma mãe chorando a falta do seu filho. Um dia eu acho que
vou ter paz. Quando eu vir esse policial julgado, condenado e preso. Aí sim eu
vou ter paz”, diz ela.
Em julho do ano passado, numa
audiência, Terezinha ficou cara a cara com os policiais que balearam Eduardo. O
processo que investigava os PMs foi arquivado pela justiça, mas a Defensoria
Pública vai recorrer.
No Piauí, Terezinha guardou as
coisinhas que pertenciam a Eduardo: uniformes, cadernos, camisa do Flamengo.
“Aqui eu guardei tudo, eu não
consigo me desfazer das coisas do meu filho. O sonho de Eduardo era ser
bombeiro. Ele falou assim: 'Mãe, quando eu crescer eu vou ser bombeiro, eu
quero estudar para ser bombeiro e salvar vida'", lembra ela, que recebeu
cartinhas dos colegas de escola do filho.
“Eu sonhei com ele, parece uma
coisa real, ele falando assim: mãe, eu estou bem. Não fica chorando, não,
porque toda vez que a senhora chora, eu passo mal. Sempre que eu venho aqui eu
falo com meu filho. Que ele é uma estrelinha que tá brilhando...”, diz
Terezinha, que há tempos não chorava pelo filho.
“A gente vê que o estado dialogou
com a gente apenas nos observando a partir da mira de um fuzil de um policial.
Então é essa sensação né? Que fomos usados, que fomos explorados”, afirma Raul.
“Somos enganados. O tempo todo”,
retruca Mariluce.
“Eu não acredito mais tanto na
palavra paz”, completa Lana.
“Paz? Eu acho que paz é a gente
ter a liberdade de ir e voltar pra casa, tranquilos”, declaraRené.
“A gente quer apenas o básico da
vida, as coisas mais simples da vida, que é isso pra gente é ter a paz”, diz
Letícia.
Paz. Camila Santos, mãe de
Letícia, conta quando foi que a filha aprendeu a escrever.
“A Letícia aprendeu a escrever paz
sem ser alfabetizada, porque eu sempre fiz questão de que minha filha
participasse de tudo, que ela estivesse ciente de tudo, porque a gente mora
dentro de uma favela. Então, quando o Eduardo morreu, a solidariedade ... Eu
estive presente na caminhada pela paz, a Letícia também esteve. E na hora todo
mundo estava escrevendo, fazendo cartazes e ela pediu para escrever. E ela
aprendeu a escrever paz naquele momento, na morte do Eduardo”, contou a mãe.
E em mais uma carta, outro pequeno
morador pede: "Pelo amor de Deus, nunca mais nos abandone. Tenho 11
anos."
Terça-feira (6), o segundo
capítulo do documentário "Complexo" vai mostrar o drama dos moradores
do Alemão e da Penha, que há décadas vivem entre os fuzis e as drogas; novos
flagrantes de criminosos armados; e os 15 anos sem o repórter Tim Lopes.
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