Luiz
Silveira/Agência CNJ
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O juiz responsável pela prisão diz
que "acordo de paz" pôs fim à violência. Lá dentro, as facções
fornecem alimentos e itens de higiene aos detentos
Na maior penitenciária do
país, a superlotação é o menor dos problemas. Encravado no
coração da capital gaúcha, a oito quilômetros da sede do governo estadual, o Presídio
Central de Porto Alegre, recentemente rebatizado de Cadeia Pública, abriga
mais de 4.600 detentos em um espaço onde não deveria haver mais de 1.900. As
celas ficam permanentemente abertas. Não há chaves. Nem grades. Os
presos circulam livremente pela galerias e, noite e dia, ditam as regras.
O descontrole das autoridades é tamanho que o próprio juiz encarregado de
fiscalizar o presídio, Sidiney José Brzuska, admite: quem manda por
lá são as facções criminosas.
Até mesmo itens básicos, como
produtos de limpeza e as roupas usadas pelos detentos, são fornecidos pelos
criminosos que comandam as três maiores facções em atuação no estado. Diz
o magistrado: “O Estado é dependente das facções, são elas que asseguram a
integridade da pessoa presa. Dentro de uma galeria tem 500 presos e nenhum
policial, e quem garante que você não vai morrer ali dentro é quem controla o
lugar. Portanto, a vida está na mão da facção, não do Estado. Se o Estado quer
reassumir o controle do presídio, a primeira coisa é garantir a integridade
física do preso”.
O juiz afirma que atualmente
o governo estadual, responsável pela unidade, fornece apenas energia elétrica,
água e alimentação básica para os presos. Todo o resto quem providencia são as
facções criminosas, o que, observa o magistrado, só faz aumentar o poderio dos
criminosos dentro do presídio. “A facção se torna credora do sujeito em
cima de comida, remédio, material de higiene, roupa, calçado. Quem fornece é a
facção ou a família. O Estado não dá”, afirma.
O testemunho do juiz tem a força
de quem, literalmente, conhece o estabelecimento por dentro: desde 2012 ele tem
um gabinete no interior do presídio. A presença frequente do juiz, porém, não
é capaz de diminuir a força das facções na unidade. Aliás, em mais um
exemplo do absurdo em que se transformou o sistema prisional brasileiro,
para instalar a vara especial de execuções dentro da cadeia a Justiça
gaúcha teve que fazer um “acordo verbal” com as facções.
Oficialmente, a segurança do
presídio cabe à Brigada Militar, como é chamada a Polícia Militar do Rio Grande
do Sul. Mas só oficialmente. Na prática, como diz o juiz, são os próprios
presos que estabelecem as regras e, a partir de um “pacto de boa convivência”,
garantem a paz na unidade.
O caos no presídio já foi
descrito, em processos da Organização dos Estados Americanos (OEA), como um sistema de
“autogestão” ou “administração compartilhada”, em que o Estado e os
presos dividem as responsabilidades sobre o funcionamento da unidade. Em 2013,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos exortou o Brasil a adotar
providências diante da gravidade da situação na unidade. A comissão
recomendava que o governo deixasse por conta dos próprios presos funções
disciplinares e o controle de segurança dentro do presídio. Não adiantou.
Pacto
Para trabalhar de dentro do
presídio, apesar da presença dos militares, Brzuska fez rodadas de
conversa e impôs condições aos presos: não poderia haver desavenças,
assassinatos ou desrespeito a ele, aos policiais e funcionários. A partir do
acordo, diminuíram os tumultos internos. Passou a vigorar no presídio a regra de
que a cela é a extensão do lar dos presos. Brigas externas de
facções ficariam restritas às ruas. Em contrapartida, os presos teriam ali um
representante do Judiciário para facilitar a análise de seus processos.
O juiz
Sidiney José Brzuska conversa com presos no Presídio
Central de Porto Alegre (Acervo pessoal
Sidiney Brzuska)
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“Minha única exigência para
atender no presídio era eu tinha que reproduzir lá dentro o mesmo nível de
segurança e conforto que eu tenho na minha sala no fórum. Significa não ter
ninguém dando soco no outro, xingando os policiais, fumando maconha ou dando
facada na minha frente”, explica o juiz.
Embora reconheça o domínio das
facções, Brzuska nega que o Estado tenha se curvado ao poder do crime
organizado. E defende o método de diálogo com os detentos para estabelecer as
regras civilizatórias num espaço que já havia sido perdido para os bandidos. “Quem
parou de dar facada e de se rebelar? Eles é que estão se curvando. Não pedimos
favor a nenhum preso. Qual seria a melhor forma de se relacionar com as pessoas
se não com o diálogo? É mais importante conversar do que impor. Quando as
pessoas e os presos ajudam a construir algo, a tendência de dar certo é maior,
eles se sentem integrantes e passam a se esforçar para que dê certo.”
Brzuska atende os presos uma vez
por semana dentro do presídio. Ouve pedidos de remoção, questionamentos sobre
progressão de pena e pedidos de acesso a medicamentos. No atendimento às
famílias, faz-se inclusive reconhecimento de paternidade. Uma vez por mês, em
dias de visita uma equipe de servidores recebe as famílias, orienta sobre os
processos e prazos. A sala é espartana, no terceiro andar do prédio da
administração do presídio, decorada por quadros da deusa Têmis, símbolo da
Justiça, e por grafites feitos pelos próprios detentos.
O juiz conhece em detalhes o
passado, a família, os processos e o comportamento dos presos. Faz um trabalho
que resume em três palavras: proximidade, diálogo e atenção. “O acompanhamento
pessoal dos presos e das famílias, dentro da unidade, o diálogo muito próximo,
permite a redução dos índices de violência e de morte”, afirma. Ele recebe
parentes dos detentos e representantes das alas e facções para conversar – sem
algemas. Entra sozinho nas galerias – algo que a polícia não faz – e diz
que nunca sofreu ameaças. “Se eu botar o pé na galeria, ninguém pode dar um pio
porque eu cumpro o meu trabalho.”
No ano passado, a presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra
Cármen Lúcia, fez uma inspeção no presídio. Foi a relação de Brzuska
com os presos que garantiu a tranquilidade da visita. A ministra ficou
entre 1.800 detentos. “Eu disse a ela: ‘esse é o maior sinal de respeito que a
senhora vai ter dentro de uma presídio’”, conta Brzurska.
O juiz reputa ao pacto que ajudou
a construir a redução dos índices de violência e de mortes dentro do
presídio. Ao longo dos anos, a cadeia foi recuperando a “tranquilidade”.
As rebeliões também rarearam. Segundo ele, os presos perceberam que eventuais
convulsões atrapalhariam os “negócios” das facções. “A lógica aqui é não
trazer a morte para dentro do sistema, porque é ruim para os negócios. Se o
preso controla uma galeria e morre alguém ali, é sinal de que ele não manda
nada. Então ele não deixa acontecer.”
Os negócios a que o magistrado se
refere com curiosa tranquilidade são muitos. Dentro do presídio funciona
livremente um mercado informal de produtos diversos – de material de
higiene a lanches. Tudo controlado pelas facções. Drogas, celulares e armas
também são comercializadas. Criam-se dívidas, que são pagas nas ruas. “Do
jeito que está, o Central é bom para o crime, porque eles (os presos) lucram, e
bom para o Estado que não gasta dinheiro, já que os presos pagam tudo
sozinhos.”
Histórico
A ministra
Cármen Lúcia, durante inspeção ao Presídio Central
de Porto Alegre em novembro de 2016
(Acervo
pessoal Sidiney Brzuska/VEJA)
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O antigo Presídio Central, um
colosso marrom com centenas de lençóis coloridos pendurados nas janelas, tem
aspecto ainda pior por dentro. As paredes carcomidas, manchadas por
infiltrações em tom amarelado, com tijolos, ferro e concreto armado
aparentes exibem o grau de deterioração do edifício, construído em
1959. Pavilhões em ruínas foram parcialmente demolidos. Esgoto corre pelos
cantos do pátio. Há ratos e baratas pelos cantos.
A paz momentânea dentro da cadeia
destoa da realidade da capital gaúcha. Porto Alegre vive uma escalada da
criminalidade. Entre janeiro e junho de 2016, o número de assassinatos aumentou
17% na cidade em comparação com o mesmo período de 2015. Os 351 homicídios
ocorridos no primeiro semestre do ano passado também superam os registrados ao
longo de todo o ano de 2006 (283). A correlação entre as facções que dividem o
controle do presídio e a violência do lado de fora é direta. Se dentro da
unidade os grupos mantêm o “pacto de paz”, o acordo não se estende às
periferias da cidade, onde elas disputam o mercado das drogas.
No ano passado, houve mais de uma
dezena de decapitações e esquartejamentos nas ruas de Porto Alegre,
principalmente em bairros pobres da capital. “Essas organizações criminosas têm
produzido um alto número de execuções. O pano de fundo são as drogas. Eles
matam para impor baixas de um lado e de outro. Essas decapitações e
esquartejamentos são situações novas, sinais de extrema crueldade para
intimidar e mandar recado”, diz o delegado Paulo Rogério Grillo, diretor do
Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). As execuções
são tão brutais quanto as dos massacres de detentos em Manaus e Roraima. A
diferença é que, no caso gaúcho, enquanto as facções se toleram dentro da
prisão com a bênção da Justiça, a guerra se dá do lado de fora.
Por Felipe Frazão
Veja.com
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