Imagem
granulada e escândalo bem delineado: Steele é o
ex-agente do
MI6 que preparou o dossiê (Reprodução)
|
Dossiê bombástico de ex-agente
secreto inglês segue o modelo clássico do gênero: para os inimigos, se não é
verdadeiro, bem que poderia ser
Quanto mais absurdo, mais queremos
acreditar. O modelo kierkegaardiano para a religião se aplica às
conspirações políticas em geral e aos dossiês em particular, aqueles documentos
que, se confirmados, derrubam governos e, se desmentidos, continuarão a ser
mencionados para todo o sempre.
E muitos meios da imprensa querem acreditar
no dossiê feito por Christoper Steele, o espião inglês “respeitado” e de
“excelente reputação” que fez o dossiê bomba sobre Donald Trump. Todo mundo já
sabe que a parte mais impossível de eliminar da mente desse dossiê se refere a
um tipo de perversão (ou parafilia) sexual praticada num hotel de Moscou e
registrada pelos russos. Tudo supostamente, claro.
Os adjetivos elogiosos em relação
a Steele foram usados pelo New York Times para descrever o trabalho do
ex-agente, que foi espião na Rússia, com fachada diplomática. De volta à
Inglaterra, chefiou a divisão de assuntos russos do MI6, o serviço britânico de
inteligência, um posto de respeito. Aposentado, abriu sua própria
consultoria, a Orbis Business Intelligence. Missão: ajudar a fazer negócios com
a Rússia.
Consta das versões unanimemente
repetidas que Steele “fugiu apavorado” de sua casa na Inglaterra depois que seu
nome foi divulgado como autor do dossiê. Como ele próprio espalhou o documento
o quanto pode, teria que ser um espião extremamente desequipado de atributos
intelectuais básicos para imaginar que o sigilo seria mantido.
A reportagem do Times, que quer
desacreditar acreditando, faz uma reconstrução da trajetória do dossiê que vale
ser reproduzida, com todos os avisos de segurança (impossível cravar o que foi
“plantado” e o que foi apurado fora da margem de dúvida).
O Times aponta como passo inicial
uma consultoria de ex-jornalistas, chamada Fusion GPS, chefiada por Glenn
Simpson e especializada em escavar o passado de empresas visadas em conflitos
comerciais ou políticos adversários.
É um trabalho mais conhecido no
Brasil como “fábrica de dossiês” . A consultoria de Simpson, segundo o Times,
foi contratada em setembro de 2015 por um milionário que contribui para o
Partido Republicano e queria levantar sujeitas contra Trump, um campo
certamente vasto (segundo a BBC, o adversário seria o próprio Jeb Bush) .
Com a vitória de Trump nas
primárias republicanas, o cliente caiu fora e foi substituído por simpatizantes
democratas de Hillary Clinton. O Times nem chega perto de dizer quem eram,
embora certamente saiba.
Também trata de forma
completamente indiferente, como se fosse uma realidade da vida, o fato de que a
Fusion GPS contratou os serviços de uma empresa estrangeira, a Orbis de
Christopher Steele. As informações sobre Trump – verdadeiras, falsas ou
parciais – foram levantadas através de russos radicados em países europeus que
falavam com informantes locais.
Steele produziu vários dossiês.
Dizem, em resumo, que o serviço secreto russo começou a se interessar por Trump
muito antes que fosse candidato, prevendo que o exótico bilionário poderia ser
manipulado através dos métodos clássicos: o suave (oferta de negócios
irrecusáveis) ou o brutal (chantagem baseada em informações comprometedoras).
Quando Trump se tornou aspirante a
candidato presidencial, diz o dossiê, a espionagem russa passou a colaborar com
informações sobre os adversários e, na fase final, sobre Hillary Clinton.
A gravidade de uma operação desse tipo é tão óbvia que dispensa elaborações.
Com indícios razoáveis, levaria inevitavelmente à abertura de um processo de impeachment
contra Trump, que ainda vai tomar posse no próximo dia 20.
A foto granulada de Christopher
Steele de smoking, mostrada acima, é um dos raros registros dele –
agentes de inteligência evidentemente fazem de tudo para não aparecer, mesmo na
vida particular.
Ele tem 52 anos e uma trajetória
clássica no que os ingleses chamam de classe média: filhos de famílias com
algumas posses e bom nível de instrução que cursam as melhores universidades.
Steele formou-se em Cambridge e daí foi recrutado para o MI6.
Como a CIA, a espionagem britânica
continua a ter apelo a universitários brilhantes que não pretendem ficar
milionários no mundo da alta tecnologia, do direito ou das finanças. Segundo o
Telegraph, Steele foi apenas um agente de nível médio, não um integrante
da elite da inteligência, como o chefe (ou a chefe) de 007.
O jornal indica também que ele
abandonou o “distanciamento crítico” necessário na profissão quando foi
encarregado de acompanhar o caso de Alexander Litvinenko. De certa forma,
o ex-agente russo que tinha informações preciosas sobre o esquema de poder de
Vladimir Putin, morreu nas mãos de Steele.
Litvinenko caiu numa armadilha do
serviço secreto russo. Num dos casos mais impressionantes de todos os tempos,
foi assassinado com uma dose de polônio-210 colocada no chá que foi tomar com
um agente enviado por Putin, num hotel de Londres. A trajetória do assassino
foi reconstituída através dos traços deixados pelo elemento radiativo.
Os dossiês mais radiativos do que
o polônio produzidos por Steele foram encaminhados primeiro a um contato dele
com o FBI em Roma. “Todo mundo” em Washington ficou sabendo da pasta
metaforicamente vermelha, incluindo jornalistas empenhados em fazer
praticamente qualquer coisa para pegar Trump, não só por obrigação profissional
como por comprometimento pessoal. Seguraram-se devido à quase impossibilidade
de confirmar as informações que constavam do dossiê.
A porteira foi aberta quando os
serviços de inteligência incluíram o relatório mais explosivo numa apresentação
feita primeiro ao presidente em exercício, Barack Obama (“O que essa coisa toda
tem a ver com alguma coisa”, perguntou ele, segundo reconstituição sujeita a
dúvidas do vice-presidente Joe Biden). Depois, James Comey, o enrolado diretor
do FBI, mencionou-o ao presidente eleito.
O diretor da CIA, John Brennan,
afirma que a ideia era simplesmente cumprir a obrigação de informar Obama e
Trump sobre um documento de teor explosivo que estava circulando, sem nenhum
juízo de valor sobre sua veracidade. Fadas, gnomos e até o Papai Noel devem ter
lá as suas dúvidas a respeito.
“Fontes” da CIA, a agência de
espionagem que era execrada pela maioria da imprensa e agora se tornou uma
central de virtudes e heroísmo por causa do confronto com Trump, têm sido
citadas em relação a outros documentos comprometedores de natureza sexual.
A impossibilidade de confirmar –
ou desmentir – informações do gênero constitui um dos aspectos mais
perturbadores da guerra suja da desinformação. No caso do dossiê de Steele, o
FBI ainda está envolvido.
John Brennan vai deixar a direção
da CIA, substituído por Mike Pompeo, em estado grave. Ou a agência foi
politizada e passou a fazer parte do jogo político interno, um anátema, ou
estará sob o comando de um presidente que colaborou com o inimigo, um traidor
manipulado pelos russos.
Quanto a Christopher Steele, as
opções também não são muito animadoras. Ele pode acabar prestando depoimento
voluntário numa futura e hipotética comissão de inquérito do Congresso
americano. Ou pedindo asilo na embaixada do Equador em Londres, onde dividiria
espaço com o mais recente aliado de Trump e conhecido simpatizante de Putin,
Julian Assange. Só não pode aceitar nenhum convite para tomar chá.
Por Vilma Gryzinski
0 comentários:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentario.
Fique sempre ligado do que acontece em nossa cidade!