Irotilde
Gonçalves trabalha desde 1989 com casos de aborto
legal em São Paulo (Foto: Gringo/Gui Christ)
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'Meu trabalho salva vidas', Irotilde
Gonçalves é responsável por encaminhar os casos previstos em lei em hospital de
São Paulo; ela conta que já foi hostilizada.
"Meu nome é Tilde, sou
assistente social deste hospital e estou aqui pra te ajudar", é assim que
Irotilde Gonçalves, 70, apresenta-se às mulheres vítimas de estupro que atende
quase todos os dias no Hospital Municipal Arthur Ribeiro de Saboya, em
Jabaquara, zona sul de São Paulo.
Paulista, nascida no interior,
Tilde, como é conhecida pelos amigos e colegas, é responsável por encaminhar
todos os casos de aborto legal, determinados pelo artigo 128 do Código Penal
Brasileiro em situações de estupro, risco para a mãe ou feto incompatível com a
vida.
Ela vive diariamente uma realidade
traduzida em números pela PNA 2016 (Pesquisa Nacional do Aborto), divulgada
nesta semana. Segundo os dados do estudo realizado pela Anis e o Instituto de
Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB), até os 40 anos pelo menos uma
em cada cinco das mulheres brasileiras já fez um aborto. Ainda de acordo com a
pesquisa, em 2015, nas áreas urbanas, meio milhão de brasileiras teriam
abortado ilegalmente.
Para a assistente social, no
entanto, os percentuais não traduzem a gravidade do problema: "Tem um
milhão de abortos no Brasil, e... quem morreu? Quem conseguiu fazer um aborto
com segurança mas pagando caro? Essa estatística não reflete a realidade, que é
muito pior. E as clínicas particulares? E as clandestinas?".
O jeito educado de falar, o
sorriso e o jaleco com flores bordadas de Tilde contrastam com a dureza
Católica,
Tilde, como é conhecida no hospital, diz que não vê
conflito
entre sua religião e seu trabalho (Foto: Gringo/Gui Christ)
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Hoje com 70 anos, a assistente
social fez parte da primeira equipe de atendimento de aborto legal, criada em
1989, pela então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina. "Antes disso
sabíamos que tinham casos de estupro e de aborto mas não tínhamos para onde
encaminhar."
"Vivíamos num hiato entre a
lei e a realidade e cumpríamos rigorosamente o código penal de 1940. (Mas) o
Estado ainda deve muito às mulheres, porque você engravidar de um estupro é uma
violência, e a mulher tem de ter direito a escolher interromper isso no serviço
público."
Na época em que a equipe de
atendimento foi criada, conta Tilde, houve um forte trabalho de sensibilização
com todos os funcionários, mas isso não evitou julgamentos, muito menos
ameaças. "Mandavam-me cartas anônimas, livros falando que o aborto era
crime, jogavam ovos na minha casa. Já me chamaram de aborteira e de
assassina", lembra. Como ficou viúva ainda jovem, encontrou no apoio dos
filhos a força para continuar atendendo.
Católica, ela fala que nunca teve
um conflito pessoal com o que faz.
"Ao contrário do que pensa o
senso comum, meu trabalho salva vidas", diz.
"Acompanho esse serviço em
todo o país e nunca ninguém morreu, ao contrário das mulheres que têm uma
gravidez indesejada e se colocam em risco. Sabemos que quando perdemos uma
mulher, toda a sociedade perde, uma família perde e, normalmente, ela deixa
filhos."
Equipe de
atendimento do hospital foi criada há 27 anos,
durante a
gestão Erundina (Foto: Gringo/Gui Christ)
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A experiência dela é confirmada
pela PNA: segundo a pesquisa, 67% das mulheres que fizeram aborto no ano
passado já tinham filhos.
Ouvinte
A parte principal do serviço de
Tilde é ouvir. "Às vezes fico uma hora, 40 minutos, o tempo que for
necessário. Algumas conseguem falar, outras só choram. Todas as histórias são
muito chocantes."
Entre as que mais marcaram a
assistente social são as das crianças e deficientes, muitas delas meninas que
são agredidas há muito tempo, mas a família só descobre quando engravidam.
"Quando este ato resulta em
gravidez é muito pior, é mais uma violência".
Ela destaca também o forte
sentimento de culpa das mulheres violentadas. Tilde diz que é comum as vítimas
se perguntarem por que saíram para buscar trabalho àquela hora ou por que
voltaram da igreja tão tarde.
Além disso, diz a assistente
social, muitas vítimas param de comer e dormir, têm crises de ansiedade e pensamentos
suicidas.
"Uma vez atendi uma mulher
que tinha sido estuprada pelo amigo do filho, outra que o próprio namorado se
juntou a três amigos e fingiu convidá-la para uma festa. Algumas se recuperam
depois e conseguem refazer a vida, outras não. Minha função é ajudá-las."
Tilde conta que, nos casos em que
a gravidez segue normalmente, a vítima não consegue assumir o papel de mãe e o
filho acaba sendo criado por uma avó ou outro parente.
Ela relembra a história de uma
senhora com quem mantém contato até hoje. Uma paciente que já tinha dois filhos
quando, no ínicio dos anos 1990, engravidou após um estupro - e passou por uma
longa jornada entre delegacias e a justiça até encontrar o hospital Saboya.
"Ela fez medalhas para todos
nós, trouxe flores, nos apelidou de anjos de branco. Essa mulher nasceu de
novo, pena que esse tipo de história se repita até hoje."
Outro grande problema narrado por
Tilde é a dificuldade das mulheres de encontrar alguém de confiança para
acompanhá-las. Às vezes vão ao hospital com uma amiga, em outras com a patroa,
poucas chegam acompanhas de homens, conta a assistente social.
Irotilde
conta que já foi hostilizada por causa do seu trabalho:
"jogaram
ovos na minha casa" (Foto: Gringo/Gui Christ)
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"Uma vez um pai me disse que
veio lendo a Bíblia para a filha - que tinha sido vítima de estupro - e se deu
conta de que aquela gravidez não tinha que acontecer", lembra.
Religião
O conflito religioso e pessoal
está presente no dia a dia de Tilde. Ela já se deparou com médicos que se
negaram a realizar o procedimento alegando objeção de consciência - direito que
permite aos profissionais não cumprir determinadas obrigações, em virtude de
convicções de natureza religiosa, moral, humanística ou filosófica.
"As próprias mulheres, em sua
maioria, consultam seu representante religioso antes de realizar o
procedimento."
No fim de novembro, no julgamento
de cinco funcionários de uma clínica, o Supremo Tribunal Federal determinou que
o aborto, se feito até o terceiro mês de gestação, não deve ser considerado
crime. O Congresso reagiu contra a decisão criando uma comissão para avaliar o
assunto. A assistente social vê a ação do Legislativo com preocupação e espera
que não aconteça um retrocesso no tema.
Irotilde é enfática ao dizer que o
mais importante é o respeito ao que acontece no corpo do outro e defende que o
aborto seja descriminalizado no país. Como bom exemplo, ela cita a Holanda,
onde a interrupção da gravidez é descriminalizada e a taxa de mortalidade
materna, baixíssima.
"Emocionalmente ninguém no
mundo seria favorável a um aborto, mas temos que perceber que é uma realidade,
está ai, e mata mulheres. É um prejuízo para todos."
Por BBC
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