A decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, de
recorrer ao Pleno do Supremo Tribunal Federal contra a suspensão parcial feita
pela própria Câmara do processo que corre na Primeira Turma do STF, em relação
algumas pessoas consideradas golpistas pela Procuradoria-Geral da República,
deve-se ao entendimento de que, no caso de um deles, em processo conjunto e não
individualizado, por ser deputado, tem a Câmara competência constitucional
de fazê-lo.
A Suprema Corte, entretanto, entendeu que não e até impôs uma restrição,
decidindo que só poderia o Legislativo suspender aquilo que foi realizado
durante o período em que o acusado já era deputado, mas não pelo período
anterior. Diante disso, a Câmara resolveu recorrer.
Não quero entrar no mérito, pois já expressei minha posição sobre os
acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, entendendo que houve baderna e não um
golpe de Estado, pois não havia arma, liderança, militar na rua, comando ou
soldado. Essa é a minha posição, que já apresentei inúmeras vezes.
Não é, entretanto, a posição dos ministros do STF, que condenaram a 14, 15, 16
e 17 anos os baderneiros. E eles mesmos, talvez por reconhecerem que as penas
foram excessivas, estão sendo consultados e apoiando uma proposta que será
apresentada pelo presidente do Senado no sentido de redução substancial das
penas impostas àqueles que, armados de estilingues, teriam tentado derrubar o
governo que contava, então, com 367 mil militares das três Armas para
protegê-lo; algo absolutamente impossível.
Mas o certo é que o conflito entre os Poderes continua. A Câmara sente-se, mais
uma vez, desprestigiada pela invasão do Supremo naquilo que entende ser sua
competência. Trezentos e quinze deputados representam uma maioria substancial
dos eleitores brasileiros – são 150 milhões. O Supremo, ao contrário,
representa, apesar de ter grandes juristas, a eleição feita por um homem só.
Entendo que o Congresso Nacional, por meio da Câmara, tem o direito de
suspender o processo. Como as ações não foram individualizados, mas reunidos em
um único processo, é compreensível que, ao tentar a suspensão em relação ao
deputado, a decisão tenha sido estendida a todos os outros, até porque quem
teria direito ao juízo natural de 1ª instância foi levado diretamente ao STF.
Como se vê, a tensão entre os Poderes é constante, sendo que ainda não temos a
harmonia e a independência entre eles, conformeprevisto na CF/88. Pessoalmente,
entendo que o Supremo, muitas vezes, tem atuado como legislador positivo,algo
que, pelo artigo 49, inciso XI da Constituição, não pode fazer. Mas os
Ministros entendem que as correntes doutrinárias que seguem justificariam a
adaptação da redação da Constituição de 1988 naquilo que consideram fundamental
para a correta interpretação da Carta Magna para os dias de hoje.
O certo é que não temos harmonia e independência entre os Poderes. E, a meu
ver, enquanto permanecermos nessa tensão, teremos grande dificuldade em viver
em um país pacificado. Estaremos em conflito constante.
Os representantes do povo contestam os representantes da lei – que não deveriam
criá-las -, mas muitas vezes o fazem sem autorização constitucional.
Representam apenas a lei, mas não podem criá-la.
Gostaria muito – não sei se viverei para ver com os 90 anos que tenho – que os
Poderes fossem como nós, os integrantes da OAB e dos Institutos dos Advogados,
assim como aqueles que buscaram a redemocratização, que participaram de
audiências públicas durante o processo Constituinte para definir,
exaustivamente, as competências constantes dos artigos 44 a 135 da Lei
Suprema, sempre lutamos: harmônicos e independentes. Assim, teríamos um país
democrático e pacificado.
Infelizmente, vivemos nessa tensão permanente e triste realidade em que os
Poderes, de certa forma, realimentam as radicalizações. Como um intérprete
originalista da Constituição – originalistas são aqueles que interpretam a
Constituição como ela foi escrita, não com adaptação do que foi escrito para
uma realidade atual –,a meu ver, ela só poderia ser adaptada à realidade
posterior pelo próprio Congresso, nunca pelo Poder Judiciário.
Enfim, essa é a minha luta permanente na busca pela pacificação nacional,
harmonia e independência dos Poderes, embora meus comentários muitas vezes,
demonstrem que este é mais um sonho de quem gosta de fazer poesia.
É quase uma visão lírica do direito que eu apresento, lembrando Saulo Ramos,
quando dizíamos, na década de 50, ao visitarmos a prefeitura do interior
declamando nossos versos, que a advocacia seria o 'bico' a sustentar o poeta. E
realmente é o “bico” a sustentar o poeta até hoje.
Francisco Rezek, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, que me saudou
em um almoço oferecido pelos meus 90 anos, brincava que eu era, na verdade, o
mais poético dos juristas conhecidos e o maior jurista entre os poetas
conhecidos. Vale dizer, procuro ainda os ideais de juventude, os ideais de ver
um país harmonizado, progredindo, sem brigas entre Poderes, sem conflitos, um
país em que o debate seja altaneiro e de ideias e não de ódios. É um sonho que
tenho desde os meus primeiros poemas.
Vou continuar lutando enquanto Deus ainda me der tempo de vida. Não sei quanto
– aos 90 anos, não será muito –, mas vou continuar lutando pela pacificação
deste país, que só será possível no dia em que os poderes forem verdadeiramente
harmônicos e independentes.
Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades
Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de
Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da
Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das
Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis
(Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova
(Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal),
presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio -SP, ex-presidente da
Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo
(Iasp).
A competência da Câmara dos Deputados nos processos do 8 de janeiro
Foto: Andreia Tarelow

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