Grasiely Torreiro entregou à polícia nome do homem e informações do veículo, mas investigação não foi aberta porque, segundo a SSP, ela não expressou ‘vontade de oferecer representação criminal’
Há algumas semanas, o Brasil
acompanha atentamente casos do “golpe do cheiro”, que
consistiria em um motorista de aplicativo utilizar substâncias químicas para
dopar passageiras mulheres que viajam sozinhas. Consistiria porque, segundo
a Polícia
Civil do Estado
de São Paulo, ainda não há a comprovação do que realmente
tem ocorrido e as investigações ainda precisam avançar. Até o momento, ninguém
foi preso pelo suposto crime e também não se sabe a motivação dele — se teria
finalidade de abuso sexual, de roubo ou sequestro, por exemplo. Ainda assim, os
relatos de mulheres são muitos, como o da executiva de contas Grasiely
Torreiro, de 34 anos, que chegou a jogar metade do corpo para fora da
janela de um carro em movimento enquanto pedia socorro. O o motorista ignorou o
pedido dela para parar o veículo quando se sentiu tonta dentro do automóvel.
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Era 1 hora da madrugada do dia 4
de junho, um sábado. Grasiely Torreiro havia solicitado um veículo no
aplicativo da Uber enquanto
se despedia de amigos em um bar na Santa Cecília. Ela ia sozinha para a casa do
namorado, também no Centro de São Paulo. A executiva afirma que, na ocasião,
não havia ingerido bebidas alcoólicas ou feito uso de substâncias alucinógenas.
Atenta a todas as informações fornecidas pela plataforma de transporte (nome e foto
do motorista, marca e placa do carro), ela relata não ter percebido nada fora
do comum ao entrar no veículo. Mesmo assim, por se sentir insegura ao se
deslocar sozinha à noite, enviou a localização em tempo real para o namorado e
um áudio, que gravou em voz alta, para que o motorista pudesse ouvir.
“Eu compartilhei o link da
corrida com o meu namorado e também tirei o print das informações e mandei para
ele. Até fiz um ‘teatrinho’ antes de guardar o celular, mandei um áudio, falei
‘eu peguei o Uber agora e chego em dez minutos, fica na frente me esperando,
vou te mandar a localização'”, conta. Mesmo assim, a executiva não conseguiu
evitar o golpe. Segundo ela, o motorista seguiu o trajeto indicado pelo GPS,
que ela tentava sempre verificar no celular dele, fixado no painel do veículo.
O homem usava máscara de proteção contra a Covid-19 e mantinha os vidros
abertos, como recomendado pela plataforma de viagens para o período de
pandemia. Mas, ao passar pela rua Luiz Porrio, na Bela Vista, que estava escura
e sem movimento de pessoas, Grasiely sentiu-se tonta e com o corpo fraco sem
explicação aparente ou visível no momento.
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Sem saber como fugir da situação
e sentindo-se fraca e tonta, Torreiro relata ter jogado parte do corpo para
fora da janela, com o carro em movimento, antes que os vidros se fechassem completamente.
Por isso, a executiva ficou com hematomas, já que o vidro travou no
corpo dela. A situação só chegou ao fim quando o motorista precisou reduzir
a velocidade do carro para fazer uma curva à direita, momento em que ela viu
outras pessoas, em uma pizzaria, para as quais gritou socorro. Com dificuldade,
ela conseguiu sair pela janela do veículo. Ao receber ajuda, encontrou uma
mulher que se identificou como bombeira, que a examinou e afirmou que as
pupilas dos seus olhos estavam dilatadas.
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Em seguida, após se recuperar um
pouco dos efeitos, a jovem registrou uma reclamação na plataforma e um boletim
de ocorrência com policiais militares que foram acionados pelo próprio
aplicativo da Uber. Na ocasião, ela afirma ter ouvido da PM que aquela era a
segunda tentativa de “golpe do cheiro” que eles atendiam na mesma madrugada. No
dia seguinte, Torreiro também registrou um B.O. em uma delegacia da Polícia Civil,
que a encaminhou para fazer um exame de corpo de delito, para dar conta do
hematoma. Toda a documentação, além de prints do perfil motorista —
identificado apenas como Aloisio na plataforma e cuja avaliação era de nota
4,95, de um total de 5,00, além de dois anos e meio de atividade pela Uber —,
marca e placa do veículo foram registrados pela vítima.
Apesar disso, o caso não foi para
frente e ainda não está sendo investigado, quase um mês após registrado o B.O.
Quando a reportagem da Jovem Pan acionou a Secretaria
de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), solicitando um
posicionamento e o andamento das investigações, foi informada de que nenhum
Boletim de Ocorrência referente a esse caso ou a outros semelhantes foi
encontrado no sistema. Com a documentação da vítima em mãos, a Jovem
Pan encaminhou os registros e teve como resposta do órgão apenas que o crime
havia sido registrado como “lesão corporal” no 78º Distrito Policial (Jardins)
e que a vítima havia sido “orientada quanto ao prazo para oferecer
representação criminal”. Em outras palavras, a investigação não foi aberta
porque a executiva de contas não expressou claramente sua vontade de “oferecer
representação criminal”, embora estivesse seguindo todas as orientações da
polícia até o momento. Uma questão burocrática da qual Grasiely Torreiro afirma
não ter sido orientada adequadamente e nem sequer ter ouvido falar em tal
expressão.
Segundo a delegada Jacqueline
Valadares, titular da 2ª Delegacia de Defesa
da Mulher (DDM) da capital, é provável que a SSP não tenha
encontrado o registro do caso dessa vítima nem de outros semelhantes porque a
polícia ainda não tem uma tipificação clara para o que está acontecendo a
partir dos relatos de doping dessas mulheres, dada a incerteza e imprecisão do
que vem ocorrendo. “Ainda não tem nenhuma vertente mais específica. A
princípio, a gente está apurando crime de uso de gás tóxico, que é um crime
típico do código penal, e, a depender do andamento das investigações, essa
tipificação pode ser alterada por um crime sexual, um crime patrimonial, a
princípio na modalidade tentada, porque nenhum foi consumado. Não tem um diagnóstico
fechado a respeito do tema. Como não há ainda algo em definitivo de que crime
seria, não tem uma tipificação fechada, cada delegacia vem registrando de uma
forma. Para fins estatísticos, é muito complicado”, explica a delegada.
Valadares ainda informa que, na
delegacia em que atua, na Vila Mariana, vem investigando apenas um único caso
sobre esse possível novo golpe. O único já registrado na unidade. Segundo ela,
o maior problema é que os relatos, muitas vezes feitos nas redes sociais, não
se transformam efetivamente em boletins de ocorrência e, consequentemente, em
investigações. “A gente pede que todas as mulheres que tenham se sentido
vitimadas nessa situação nos procurem para registro. Quanto mais mulheres nos
reportarem — eu falo mulheres porque todos os casos que a gente ouve envolveram
mulheres —, melhor conhecimento do cenário a gente vai ter. Para que se possa
ver se é o mesmo motorista, se são motoristas que têm algum vínculo entre si.
Além disso, também pedimos que as vítimas venham o quanto antes porque como, em
tese, envolve um gás tóxico, ainda que algumas não relatem nenhum cheiro, é
importante a realização de exame toxicológico.”
No caso investigado pela delegada
da 2ª DDM, o relato da vítima envolve um cheiro estranho, fraqueza e tontura,
mas a mulher pediu para o motorista parar o carro, ele encostou, e ela saiu do
veículo. “Isso está sendo investigado. A gente já entrou em contato com o
aplicativo, já conseguimos a qualificação, o motorista também já foi ouvido.
Estamos no aguardo de alguns laudos periciais”, conta a Jacqueline Valadares.
Segundo ela, os motoristas dizem que a hipotética substância utilizada seria
alcool 70% ou gel, ou ainda aromatizadores, utilizados para manter o carro com
o aspecto de limpeza.
Em relação à Uber, Grasiely
Torreiro, diz ter registrado uma reclamação no aplicativo, contando toda a
situação. “Quatro ou cinco dias depois, a plataforma entrou em contato comigo,
pedindo para relatar o caso. Contei novamente tudo o que tinha acontecido, já
pela quarta vez, porque antes eu expliquei por ‘direct’ no Instagram, no
Twitter e pelo aplicativo, onde acionei a empresa. O suporte me falou que eu
estava bloqueada para aquele motorista, para minimizar o risco de a gente se
cruzar numa outra corrida e até seguirem as investigações”, relata.
O que dizem as empresas de
transporte por aplicativo
Em nota, a Uber disse que tem
conhecimento de apenas duas únicas denúncias sobre esse tipo de golpe que já
tiveram investigação concluída pela Polícia Civil: uma ocorrida em Canoas, no
Rio Grande do Sul, e a outra na cidade do Rio de Janeiro. “Em ambos os casos,
as autoridades pediram o arquivamento após o inquérito policial, já que, de
acordo com as investigações, não houve elementos de prática de crime.
Especificamente no caso do Rio de Janeiro, o laudo pericial do líquido
borrifado no veículo atestou se tratar de álcool 70%. Não foram encontradas
outras substâncias de natureza tóxica, perigosa ou nociva”, informou a
plataforma. “Nas demais denúncias mencionadas até o momento, muitas das quais
surgem nas mídias sociais e são reverberadas pela imprensa, sem se checar o que
apurou a investigação conduzida pelas autoridades policiais, não temos
conhecimento de nenhum inquérito que tenha sido concluído e identificando
elementos que comprovem o uso de quaisquer substâncias com o propósito de
dopagem ou com o indiciamento do suposto motorista agressor. De qualquer forma,
a Uber trata todas as denúncias com a máxima seriedade e avalia cada caso
individualmente para tomar as medidas cabíveis, sempre se colocando à
disposição das autoridades competentes para colaborar, nos termos da lei”,
finaliza.
Sabendo que, muitas vezes, a
população utiliza o nome da empresa “Uber” para se referir também a outros
aplicativos de viagem e, a partir da observação da delegada Jacqueline
Valadares de que há relatos do “golpe do cheiro” com motoristas de aplicativos
variados, a reportagem entrou em contato também com a 99, empresa
que presta o mesmo tipo de serviço e disputa o mesmo mercado com a Uber. Em
nota, a 99 informou que tem uma política de tolerância zero para assédio ou
violência sexual. Segundo a 99, a sua plataforma conta com inteligências
capazes de identificar passageiras em maior situação de riscos e as direciona
para motoristas homens melhor avaliados ou para motoristas mulheres. “Além
disso, rastreiam comentários deixados após as corridas para detectar palavras e
contextos que possam estar relacionados a assédio para que medidas cabíveis,
como acolhimento às vítimas e banimento dos agressores, sejam tomadas. A 99
ainda disponibiliza câmeras de segurança, todas as corridas são monitoradas em
tempo real e as usuárias contam com recursos de compartilhamento de rota com
contatos de confiança, gravação de áudio e botão para ligar direto para a
polícia”, diz a plataforma.
Por Pedro Jordão
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