Diante de um
cenário de corrupção de políticos, crise econômica e descrédito da população em
relação aos seus representantes, um grupo de servidores do Estado se insurge
para tentar reestabelecer os valores republicanos no Brasil.
Foi o que
aconteceu nos anos 1920, 1930, quando um movimento de tenentes do Exército
tentou tomar o poder e impor uma agenda de moralidade administrativa. E é, de
acordo com o cientista político Christian Lynch, o que tem acontecido nos anos
2000 e 2010, com um movimento de juízes de diferentes instâncias que passou a
usar a interpretação das leis para colocar quadros da política nacional atrás
das grades e rever benesses destinadas às elites nacionais - como o foro
privilegiado derrubado essa semana pelo STF.
O primeiro
movimento ficou historicamente conhecido como tenentismo e marcou a história
brasileira com episódios como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana ou a
Coluna Prestes. O segundo, Lynch, professor da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, batizou de 'tenentismo togado" ou "judiciarismo". Em
comum, ambos têm a motivação política, a classe social de origem e os objetivos
moralizantes. No primeiro caso, no entanto, o grupo tentou alterar o status quo
por meio das armas - e fracassou.
"Substitua
'espada' e 'metralha' dos tenentes por delações premiadas e sentenças
condenatórias e teremos o tenentismo togado do Brasil", diz ele, em
referência às ações da Operação Lava Jato e às contendas recentes no STF.
Os
desdobramentos da movimentação dos juízes "tenentes" no país é ainda
incerta, mas seu poder tem escalado continuamente, de acordo com Lynch. Hoje, o
Supremo seria o órgão mais poderoso no país e o ex-ministro do STF Joaquim
Barbosa, possível candidato presidencial pelo PSB, o representante do movimento
no pleito de 2018. Em entrevista à BBC Brasil, Lynch explicou sua teoria acerca
do "tenentismo togado" e explorou os possíveis impactos do movimento
para o futuro político nacional.
BBC Brasil -
Quais paralelos o senhor vê entre o tenentismo e o ativismo do Judiciário
atual?
Christian
Lynch - O que aconteceu de cinco anos para cá - com as Jornadas de
2013 - é que o consenso moderado da política brasileira de vinte anos se
desfez, e voltaram a surgir correntes radicais da direita e da esquerda. O
establishment político liderado pela presidenta Dilma não conseguiu dar nenhuma
resposta às insatisfações, e surgiu o espaço para uma "vanguarda".
Isso aconteceu no momento em que a operação Lava Jato começou a tomar vulto. A
gota d'água foi a vitória apertada de Dilma em 2014, com sua declaração
infeliz, na própria noite da vitória, de que não falara a verdade ao longo da
campanha e que havia uma monstruosa crise econômica e seria inevitável o ajuste
fiscal.
Como o PT não
poderia bancar um ajuste fiscal sem rasgar todas as suas bandeiras, as relações
do partido com a presidência baquearam; da mesma forma, com o avançar da
Lava-Jato, soou o alarme dentro do PMDB, incrédulo a respeito da capacidade da
presidenta de "estancar a sangria" (expressão usada por Romero Jucá
em áudio em que se atribui a ele interesse em frear as investigações). Em março
já se falava em impeachment. Diante do vácuo do poder, os juízes aparecem.
Começou a "revolução judiciarista".
Essa é uma
conjuntura parecida à vivida no país de 1929-1930. Os setores insatisfeitos não
conseguem ver no aparato institucional - governantes, congressistas, partidos -
uma válvula de escape para a renovação, e daí, naquela época, temos a revolução
tenentista. As vanguardas aparecem em momentos de crise do sistema
político-constitucional.
BBC Brasil -
Quem são essas vanguardas?
Lynch
- São grupos geralmente instalados no próprio aparelho do Estado,
pertencentes ou originários da classe média, que passam a defender a tese de
que não podem se comportar de modo passivo como meros burocratas a serviço de
autoridades que percebem como corrompidas. Toda vanguarda se investe da posição
de guardiã da República, da moralidade, da boa política, da cidadania. A
vanguarda modernizadora brasileira por excelência foi representada pela jovem
oficialidade do Exército, os tenentes.
Agora, esse
ativismo político não é nacionalista nem surge dentro do Exército. Ela é
orientada por valores liberais e vem das fileiras do Poder Judiciário e do
Ministério Público, e se materializa na doutrina do "judiciarismo",
ou seja, da centralidade da atuação política do Judiciário para a salvaguarda
da democracia e dos valores constitucionais. Graças à "ideologia do
concurso público", os juízes e procuradores percebem-se como gente que
vive dos próprios esforços e méritos; eles detêm um poder que não é
propriamente político, mas que, em um contexto de indignação generalizada com a
política, é usado para fazer justiça, entre aspas.
Na República
Velha, como o sistema político não dava vazão às vontades das minorias e o
sistema ficava cada vez mais conservador, Rui Barbosa começou a apostar no
Supremo Tribunal Federal para desalojar as oligarquias do poder por meio da
mudança de interpretação da constituição.
O movimento
tenentista invocava Rui Barbosa. Um de seus manifestos dizia: "Ou a
política se regenera, se torna sã e útil, ou nós a destruiremos de qualquer
forma, mesmo que seja novamente pela espada e pela metralha." É mais ou
menos o que o ministro Luís Roberto Barroso representa agora. Substitua
"espada" e metralha" por delações premiadas e sentenças
condenatórias, e teremos um cenário semelhante ao de hoje, gerado pelo
"tenentismo togado".
BBC Brasil -
Quando os juízes começaram a se constituir como atores políticos?
Lynch
- Há pelo menos duas décadas. A judicialização da política foi uma
consequência da Constituição de 1988. Os deputados constituintes apostaram na
organização de um Judiciário e de um Ministério Público independentes e
poderosos em relação ao Executivo e ao Legislativo. Ao longo do governo
Fernando Henrique Cardoso, houve um grande investimento nas carreiras de juiz e
de procurador, de valorização das carreiras de estado. Ao mesmo tempo foram
aumentando as prerrogativas e os privilégios da classe.
A ideologia do
"judiciarismo" reapareceu por esse tempo, respaldado pela tese de
que, ao lado da representação eletiva (deputados, senadores, vereadores),
existiria uma espécie de "representação funcional" da sociedade,
exercida pelo Judiciário e pelo Ministério Público. Mas o Judiciarismo também
se respaldou, dentro da academia, a reboque de uma moderna teoria do direito,
conhecida como pós positivismo ou neoconstitucionalismo.
BBC Brasil -
O que seria isso?
Lynch
- Grosso modo, é a ideia de que os juízes e promotores não deviam mais
se limitar a executar as leis de forma passiva; que eles deveriam se
conscientizar de suas responsabilidades como agentes cívicos e passar a
interpretá-las. Nessa chave, em vez de aplicadores das normas jurídicas, os
juízes e promotores passaram a se ver como guardiões dos princípios
constitucionais, como dignidade da pessoa humana, republicanismo, cidadania,
livre iniciativa, pluralismo político, etc. Eles passaram assim a encarnar,
contra o malvisto "político profissional", o "bom político"
idealizado pelo liberalismo clássico: idealista, justiceiro, desprendido,
adversário das oligarquias, dos ditadores e das multidões irracionais.
O problema é
que essa doutrina foi desenvolvida em lugares muito diferentes do Brasil. Na
Alemanha, são apenas os 16 juízes do Tribunal Constitucional Federal que podem
interpretar a constituição. Nos Estados Unidos, qualquer dos cerca de 30 mil
juízes pode exercê-la, mas a Constituição americana tem 7 artigos e menos de 50
comandos. No Brasil, a Constituição tem 250 artigos. E são cerca de 16 mil
juízes que ficaram encarregados de interpretá-los a seu modo. Então a
disparidade de interpretações se tornou epidêmica, obrigando à centralização
crescente da jurisprudência no Supremo Tribunal, que se tornou ainda mais
poderoso no sistema político.
BBC Brasil -
Não é incoerente que os juízes defendam a moralidade na administração pública
mas defendam receber auxílio-moradia de cerca de R$4 mil mensais?
Lynch
- Eu brinco dizendo que os guardiões da República cobram caro para
exercer suas funções moralizadoras. Sem dúvida, é estranho que juízes que se
digam tão republicanos e desprendidos e em nome desses valores defendam a
moralidade na administração pública desejem ganhar vencimentos estratosféricos
e recorram aos expedientes os mais vergonhosos para seguirem aumentando-o -
como este, do auxílio-moradia de cerca de R$4 mil mensais inclusive para quem
tem casa. E nesse sentido eles lançam mão de um argumento de mérito: eu me
esforcei para passar no concurso público, então agora tenho direito aos
privilégios. É um mero pretexto para justificar privilégios e faz parte das
contradições desse liberalismo judiciarista.
BBC Brasil -
Como se cria essa mentalidade nos juízes?
Lynch
- O movimento começou nas pós-graduações em direito, na década de
1990, na forma de um "constitucionalismo da efetividade", contra a
passividade com que o STF exercia suas novas prerrogativas constitucionais. Foi
um movimento deliberado e articulado voltado para mudar a mentalidade dos
operadores jurídicos, operado de dentro da academia, que ganhou depois a
graduação e entrou nos quadros da magistratura e do ministério público. O
pós-positivismo ou neoconstitucionalismo foi o passo seguinte, recepcionado do
mundo norte-americano e alemão. O que percebemos hoje nos embates entre os
juízes do Supremo Tribunal, que os tornam tão agudos, não é apenas um reflexo
da luta política que se desenrola fora do plenário, mas da luta por poder
dentro do próprio tribunal, que às vezes também adquire feições de uma luta
entre gerações e formas antagônicas de interpretação da Constituição. Os
judiciaristas entendem que o juiz constitucional não pode decidir em abstrato
ou no vácuo, devendo levar em consideração as circunstâncias concretas e as
consequências objetivas de seus atos. Por isso, ao julgar uma questão penal,
eles recorrem a estatísticas, informações do sistema penitenciário, comparação
com outros países, etc.
No julgamento
do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula, essas cisões ficaram
claras. No âmbito do direito penal, houve um declínio do chamado garantismo,
corrente doutrinária extremamente favorável ao réu ou ao investigado, baseado
em considerações filosóficas e humanísticas relativas à inutilidade da pena de
prisão para a ressocialização do condenado. Esse era o mundo de juízes como
Celso de Mello e Marco Aurélio. Entretanto, em algum momento entre a década de
1990 e os anos 2000, aqui também as coisas começaram a mudar. Com o sentimento
de degeneração do sistema representativo, atacado por uma corrupção sistêmica,
os juízes e promotores "políticos" começaram a se preocupar com o
problema da impunidade e a buscar novas soluções para combatê-la, especialmente
no nível dos grandes empresários e dos políticos profissionais e seus
afilhados. Não seria com garantismos e pela impossibilidade indefinida de
recursos, pensaram, que conseguiriam dar cabo dessa tarefa.
BBC Brasil -
Por que há essa mudança?
Lynch
- O perfil dos procuradores e juízes mudou, pelo menos no Sudeste e no
Sul do país. Antigamente, o juiz era uma carreira a que quase sempre se
ingressava por nomeação do governador ou do presidente. Então, o magistrado
típico era o apaniguado, o sobrinho do prefeito. Os juízes até recentemente
estavam invariavelmente ligados às oligarquias tradicionais e políticas por
laços de sangue ou dependência. Eram, por conta disso, mais deferentes diante
do poder. A introdução do concurso público como modalidade exclusiva de acesso
ao sistema alterou essa configuração sensivelmente. Passaram a ingressar na
magistratura e no ministério público gente de classe média para quem a vitória
no concurso público representava o coroamento de uma trajetória árdua de estudos,
ou seja, a vitória do seu "mérito". Na prática, o concurso para
aquelas carreiras passou a ser encarado como a porta de ouro por meio do qual a
classe média conseguiria ingressar em um estamento privilegiado, cheio de
privilégios e regalias corporativos, além de crescente poder político.
BBC Brasil -
Quando o general Villas-Boas escreve, nas vésperas do julgamento do habeas
corpus do Lula no STF, que o Exército repudia a impunidade, ele está reforçando
o lado Judiciarista da história, não?
Lynch
- O ministro Barroso reconheceu outro dia, talvez involuntariamente,
que militares, procuradores e magistrados têm várias características comuns,
desde funcionais até ideológicas. Os militares certamente têm, como os
"tenentes togados", horror à política profissional, e desejam muito
que a "faxina cívica" promovida por estes últimos chegue a bom termo,
com a "cassação dos corruptos". Um dos aspectos que temo na renhida
luta que vem se desenrolando no STF, entre judiciaristas e antijudiciaristas,
representados por Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, é que a derrota do
pessoal do Barroso possa provocar um pronunciamento militar. A mensagem
veiculada pelo Comandante do Exército na véspera do julgamento do habeas corpus
do ex-presidente Lula foi uma advertência nesse sentido: se os "tenentes
togados" não conseguirem fazer a "faxina", os tenentes
propriamente ditos, os armados, poderão entrar em cena.
Este é um
contexto perigosíssimo. O STF virou um campo de batalha entre aqueles que, como
o Barroso, querem levar adiante a "revolução judiciarista", a fim de
"empurrar a História", e aqueles que querem debelá-la a fim de salvar
o establishment político. O Brasil virou o país da chicana: todo mundo agora
tenta puxar o tapete de todo mundo, engendrar estratagemas e usar de artifícios
pra fazer valer a sua posição - e isso acontece até no nível do Supremo. Só um
novo presidente poderá reinicializar o sistema político; só ele terá uma
legitimidade que hoje ninguém mais tem.
Mas não se
trata de uma eleição qualquer e de um presidente qualquer: o ambiente de ruína
em que as instituições se encontram, com os contendores se batendo com
violência e a população exausta pela "revolução", estão reunidas
várias condições para a potencial emergência de um presidente "Bonaparte",
isto é, alguém que reivindique o restabelecimento da autoridade e da
honestidade, de um lado, com a necessidade do progresso social, de outro. Uma
mistura de Lula com Bolsonaro. O vitorioso, único poder legítimo no meio dos
destroços, assumirá o poder com uma força e uma legitimidade que só o
ex-presidente Fernando Collor teve no passado recente; com autoridade para
fazer praticamente tudo o que quiser.
BBC Brasil -
Com esse crescimento do Judiciarismo, não soa um pouco estranho que ele ainda
não tenha tido um candidato à presidência para chamar de seu? Essa pessoa seria
o Joaquim Barbosa?
Lynch
- Ter um presidente é estratégico, porque é ele quem indica os juízes
do Supremo Tribunal e o procurador-geral da República. Mas, para os
judiciaristas, mais importante do que ter um candidato a presidente, é
assegurar uma maioria dentro do STF. O Supremo tornou-se hoje o órgão mais
poderoso da República, só encontrando equivalente no Conselho de Estado do
Império. Seus membros têm mais poder do que qualquer deputado ou senador.
Então, o
judiciarismo não precisa necessariamente ter candidato. Mas ele virá.
Comprometer-se com os ideais da "revolução judiciarista", como o
combate à corrupção, será um puxador de votos importantíssimo para qualquer
candidato que deseje vencer nas eleições deste ano. O ex-ministro Joaquim
Barbosa seria o candidato natural do judiciarismo e das forças que o sustentam.
E ele viria com todas as chances de ser o candidato de perfil bonapartista, com
um espírito da liquidação das oligarquias.
Acho pouco
provável a vitória de candidatos das máquinas partidárias que estejam
encrencados com a Justiça ou com a imagem muito colada ao establishment
político, como o Alckmin também. O que a maior parte do eleitorado - ou, pelo
menos, a parte mais influente deles - buscará provavelmente é um candidato
comprometido com o reestabelecimento da autoridade no país, mas também com a garantia
das conquistas obtidas nos últimos anos com a redução das desigualdades
sociais, e também do combate à corrupção. Não sei se o Joaquim Barbosa aguenta
uma eleição, em termos de personalidade, mas a estampa e a história dele o
legitimam desse ponto de vista.
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