Rio - Dentre as moléstias
que causam tanta dor e sofrimento no sistema penitenciário fluminense, a
indiferença com a vida humana está entre as mais letais. O Rio de Janeiro vive
a pior crise financeira de sua história: a população livre sofre com a carência
de serviços básicos, especialmente na área da Saúde e Educação, de
responsabilidade do combalido governo fluminense. Entretanto, no caso da
população carcerária, sobra verba para amenizar os problemas de saúde que
mataram, pelo menos, 640 presos (dos 1.149 óbitos registrados entre 2010 e
fevereiro de 2017 nos presídios do Rio). O que falta são projetos. Seria cômico
se não fosse trágico, mas a realidade é que milhões em verbas federais
repassadas ao Estado do Rio para investir na saúde da população carcerária
ficaram presos.
"Eles (secretários de
Saúde) não aceitavam a forma como foi prestada a conta. Fizemos várias
reuniões, e prometiam liberar a verba, mas não repassavam"César Rubens
de Carvalho, ex-secretário de Administração Penitenciária
Entre 2004 e 2010, o Fundo
Nacional de Saúde (FNS) transferiu R$ 10 milhões para serem aplicados em
políticas de saúde no sistema carcerário do Rio, de acordo com o Plano Nacional
de Saúde no Sistema Prisional (PNSSP). Entretanto, a Secretaria Estadual de
Saúde (SES) repassou apenas 30% para a Secretaria de Administração
Penitenciária (Seap), responsável pela movimentação e execução dos recursos
carimbados para a saúde dos presos. R$ 7,4 milhões permanecem até hoje parados
na conta administrada pela SES. A justificativa para reter o dinheiro destinado
à saúde dos presos é que, em 2007, descentralizaram R$ 1,1 milhão à Seap, mas
os carcereiros usaram apenas R$48 mil e até hoje não prestaram contas nem
devolveram os recursos que não foram utilizados. Quando a Seap voltou a pedir
dinheiro (R$ 220 mil), em 2008, a SES negou, alegando a falta de prestação de
contas e condicionando a liberação da verba federal à devolução dos recursos
não utilizados em 2007. Como a Seap não prestou conta da aplicação dos recursos
e não devolveu nada, a SES nunca mais repassou uma moeda da verba federal (que
continuou recebendo até 2010) para a saúde do sistema penal.
Secretário da Seap à época, César
Rubens Monteiro de Carvalho explicou que apresentou as prestações de conta, mas
a SES é que não quis aprovar. “Eles (SES) não aceitavam a forma como foi
prestada a conta. Fizemos várias reuniões, e eles prometiam liberar a verba,
mas não repassavam. Acho que o repasse deveria ter ocorrido mesmo sem a
aprovação”, afirmou, ressaltando que havia 100 rebeliões por ano no sistema
prisional, mas depois que assumiu a secretaria, não houve mais motim.
A irregularidade quanto ao uso do
dinheiro federal foi descoberta durante monitoramento conjunto do MS e MJ, em
2009. Os técnicos constataram a baixa execução dos recursos e a não
apresentação da prestação de contas por meio de Relatórios Anuais de Gestão
(RAGs). O MS ainda solicitou um plano para emprego da verba represada, mas como
nada foi feito, em 2010, simplesmente cancelou o repasse de verbas. Os
prejuízos causados pela suspensão dos repasses é objeto de processo na Justiça
do Estado, apesar de as verbas serem federais. Os réus que respondem por
improbidade administrativa são os ex-secretário da Seap, César Rubens Monteiro
de Carvalho, e dois ex-secretários de Saúde, Marcos Esner Musafir e Sérgio Luiz
Côrtes de Oliveira.
GESTORES PÚBLICOS NÃO PRESTAM
CONTA, E PRESOS SÃO PUNIDOS
A interrupção dos repasses de
verbas federais para investimento na saúde prisional do Estado do Rio está
entre as causas do expressivo aumento de mortes no cárcere fluminense. Em 2010,
quando as transferências foram canceladas pela falta de prestação de contas dos
milhões que entraram nos cofres do estado e pela ausência de projetos, foram
registrados 128 óbitos nos presídios do estado, metade do verificado em 2016,
254 mortes. Pelas contas do Ministério da Saúde (MS), a perda acumulada de
recursos desde a suspensão, em junho de 2010, até dezembro de 2013, somou R$
5,6 milhões (R$ 132 mil vezes 43 meses). Valores que, segundo a denúncia do
Ministério Público, jamais serão recuperados para investimento na saúde
prisional do Estado do Rio de Janeiro.
Coincidência ou não, o fato é que
até 2006 as contas eram prestadas corretamente. Porém, a partir do momento em
que o ex-governador Sérgio Cabral pisou no Palácio Guanabara, em janeiro de
2007, não foi comprovado um gasto, até 2010, quando os repasses foram
suspensos. Hoje, Cabral é interno do Complexo Penitenciário de Gericinó, por
causa de uma série de crimes, revelados pela Operação Calicute.
Em 2014, foi criado um Grupo de
Trabalho para regularizar a situação. Em outubro de 2015, foram apresentados
Relatórios Anuais de Gestão (RAGs) de 2006 a 2013. No entanto, comprovantes que
justificassem as despesas não foram anexados, e as prestações de contas foram,
outra vez, rejeitadas. Procurado, o MS informou, por e-mail, que os repasses
para o Plano Nacional de Saúde no Sistema Prisional (PNSSP) do Rio de Janeiro
continuam suspensos, devido a “pendências por parte do estado no envio de
Relatórios Anuais de Gestão e Planejamento referentes ao PNSSP”. No entanto,
ressalta que repassa anualmente, em parcela única, recursos para a compra de
medicamentos e insumos. “Em 2016, foram liberados R$ 858,8 mil para compra
destes medicamentos”, garantiu. A Secretaria de Estado de Saúde (SES) informou
que a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária deve estabelecer um
programa de trabalho para que os recursos possam ser descentralizados. A Seap
não explica onde o dinheiro recebido foi gasto. Questionada, se limitou a
responder que a SES vai liberar R$5 milhões “na semana que vem, quando começa o
ano fiscal, que será aplicada em medicação para os internos”.
Ou seja, o problema não é falta de
dinheiro, mas falta de compaixão.
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